O Sublime e o Crime
Ainda aqui na Espanha, e agradecendo a Deus por isso, penso que Edgar estava certo ao dizer que os espanhóis são os latinos dos latinos, indo pela noite afora sempre festivos. Aqui, sente-se o calor do sol, das emoções, e da conexão com os semelhantes mesmo sem conhece-los, na espontaneidade da vida prosseguindo dentro e fora dos apartamentos, uma vida exuberante em que as pessoas, expostas, a compartilham.
Nessa excelência de sol, mar, paixão e devoção, os latinos não se intimidam pelos extremos do sentimento porque são pessoais, dramáticos, barulhentos, e catárticos, na sua capacidade de expressar emoçōes opostas em curto intervalo de tempo, sem se sentir incoerente ou bipolar.
O grande cineasta Almodóvar, ao expor um mesmo personagem por ângulos opostos, anula os limites entre certo e errado, delinquência e sanidade. Sua intensidade é metafísica, porque alcança a dimensão do amor além da moral, dos gêneros sexuais, e de todos os rótulos; um amor, através do qual, o crime pode se tornar sublime.
Não foi Benigno (Hable con ella) um salvador ao fazer sexo com a paciente que, em coma, foi desacreditada pelos médicos, e que ele tanto amava? Não foi ele sublime, ao manter constante diálogo com ela durante meses, e, a despeito do que pensa a ciência médica, acreditar que se comunicavam, a ponto de ler o pensamento da moça?
O amor metafísico é um amor de alma pra alma; uma comunhão. Em silencio, dois indivíduos se encontram no mesmo ser.
Passando para outro exemplo, ao se contemplar a beleza de La Sagrada Familia , na iridescência interna de cores projetadas pela luz de fora, cruzando-se em dimensōes que parecem vencer o espaço em direção ao céu, num movimento "parado" que é igualmente liberto do tempo, a gente sente a presença divina, e até sem perceber, vai acreditando mais e mais em toda a hierarquia celeste `a medida em que se vai mais e mais rendendo-se ao belo que nos transcende: A fé é a dimensão metafísica da beleza.
La Sagrada Familia é expressão de absoluta liberdade artística, e paradoxalmente, na sua perfeição, é também aquilo que deve ser; o que surge do jeito conforme deve surgir. Pois, a única lei que rege a verdadeira liberdade é a vontade de Deus.
A fusão de estilos e artistas diversos, a seriedade lúdica, na mistura de simbologia e realismo, a inocência em dar aos adornos externos significado literal, a explosão interna de cores iluminadas, e externamente, o aspecto de castelo de areia ornamentado de conchas, flores, estrelas, assim como as pombas brancas da Natividade, dão, `a basílica, a leveza infantil do sonho, ao mesmo tempo que a seriedade, visceralmente gótica, do absoluto respeito religioso.
Olhando de fora La Sagrada Família, me pareceu que gotas gigantes de areia molhada escorreram das mãos de anjos, empilhando-se umas sobre as outras ao ascender na direção das mãos angélicas e formando esse templo de prece infinita, `a volta do qual querubins brincam adornando seu exterior, enquanto o mar e as plantas da terra, os bichos e as frutas, o presenteiam com suas cores.
Arrepia pensar que Gaudi, sabendo que não viveria para ver sua obra completa, disse que Deus não tem pressa, e a basílica será concluída quando todos os seres da terra houverem alcançado sua maturidade perante Ele. Isso me faz lembrar a profecia Lakota, que também sugere, como conclusão final de todos os conflitos, a maturidade a ser alcançada.
Conversando, há poucos dias, com o cacique Black Spotted Horse, aprendi que segundo os Lakota haverá um resgate do que, pra eles, era uma união original das culturas indígenas, com a dos que vieram a construir as cidades. “Deus não tem pressa”. Quando alcançarmos maturidade diante d’Ele, ou, quando resgatarmos a harmonia de uma unidade original, como no mito Lakota, a Sua vontade terá sido feita.
Enquanto isso, o vândalismo da civilização, sob o jugo de um materialismo desvairado, tem cegueira imperdoável, e não só constrói oleoduto sob território Lakota, profanando qualquer sitio sagrado que lhe renda lucro financeiro, como cospe no seu próprio prato, boicotando seus monumentos espirituais; o que é prova de que -para usar uma metáfora de Oscar Wilde “We are all in the gutter, but some of us look at the stars” – estamos todos na sarjeta, mas alguns de nós olham para as estrelas.
Ao contrário de Almodóvar, que, por motivos visceralmente profundos, redime o crime no sublime, a mente “civilizada”, quando bem lhe apraz, transforma o que é crime em lei, pela total superficialidade de permissōes burocráticas. Assim, constrói oleoduto sob terra Lakota, e túnel para rápido transporte sob La Sagrada Familia.
Inversamente ao coração, que não pode julgar porque sente, a mente racional não pode sentir porque julga.
Esperemos que, ao invés de ponto final, isto seja apenas um estado de transição. Esperemos que, como na visão de Almodóvar, em que leis não são exatamente quebradas mas sim superadas, o crime seja redimido no sublime; que, como no mito Lakota, haverá reconciliação de todos os conflitos.
Enquanto isso, podemos lavar a alma na contemplação da Sagrada Família; na experiência da fraternidade universal que ela representa.
“Deus não tem pressa”: Um dia, a velocidade ficará pra trás e o petróleo será obsoleto.