Aninho, Marta e Maria
Ficamos hospedados em Barcelona, numa rua em que não passa carros. Assim como o nosso apartamento, os do prédio em frente tinham suas pequenas varandas, onde os moradores se quedavam durante longos momentos de cada vez através do dia, para olhar, ou simplesmente sentir, o que acontecia lá fora. Casais idosos pareciam encontrar nisso seu principal afazer, pois traziam pra fora seus refrescos, bordados, ou até tábua de passar roupa, para não interromper sua contemplação e contacto com o ar externo. Devido ao calor, os homens apareciam de bermuda e sem camisa, expondo com naturalidade suas barrigas volumosas e peitos peludos, pouco se lixando para a imagem que poderiam dar aos outros.
Quando eu e meus filhos voltávamos da rua, íamos direto para a nossa varandinha, que logo da porta de entrada aparecia como um observatório, convidando-nos `a descoberta de outros universos. Sem poder exatamente precisar ou prever cada vida particular que nos aparecia, todas elas, como estrelas distantes, sugeriam mundos desconhecidos, atrás de cujo brilho tudo podia acontecer, cada qual evocando a presença potencial de todas as estórias possíveis se imaginar. Sentir essa totalidade que, testemunha do ilimitado da imaginação, nos permitia transpor os limites da realidade imediata, não só era enriquecedor, mas também tranquilizante.
Lembrei-me de Aninho, o personagem nascido das horas em que Edgar e eu, com não mais do que quatro e cinco anos, passávamos sentados do lado de fora da porta de nossa casa, olhando pra rua. Aninho foi inventado a partir de um vizinho real, cuja casa ficava no ponto mais remoto da ladeira em que morávamos. Passando horas sentados do lado de fora da entrada de nossa casa, assistíamos, com a devoção que merece o desenrolar da vida, tudo que acontecia naquela pequena rua ascendente e sem saída. Sempre que o carro azul de Aninho despontava lá no alto, recém saído de sua garagem, nossa atenção se aguçava para poder registrar todos os segundos da passagem do vizinho, como se fosse o desfile de um rei. Quando um de nós o via do alto do nosso terraço, ou de algum ponto no jardim, a cena de que ele fazia parte, por mais trivial que fosse, virava uma revelação. Quando um de nós tinha qualquer informação nova sobre Aninho, se sentia “escolhido”, e com impaciência, ansiava pela hora de participar ao outro o que havia testemunhado. Quando com medo do escuro, confinados `as nossas camas para dormir cedo, a conversa sobre Aninho era redentora. Parecia remendar a fragmentação de todas as formas que a escuridão diluía e reagrupava no que nos aparecia como entidades ameaçadoras, assim como dar sentido `a passagem do tempo, transformando aqueles momentos de opressão no desenvolvimento de uma estória, e assim nos libertando de qualquer sensaçao de aprisionamento.
Criando Aninho, a partir de uma observação contemplativa, ao invés de, como muitos poderiam pensar, interessada ou fofoqueira, criamos um herói, cujo nome tornou-se senha contra o medo noturno, e cuja existência na imaginação nos unia. Toda noite, um de nós dizia, assim que mamãe apagava a luz e nos deixava, “Vão conversar do Aninho?”
Quando não tínhamos nada novo pra contar, repetíamos as mesmas estórias, cujo valor, semelhante ao de uma prece, não se esgotava na repetição: “Aninho estava dirigindo e…” etc etc.
Tendo morado há muitos anos em varias cidades dos Estados Unidos, esqueci que se expor na janela e olhar o mundo la fora regenera, pois que, antes de tudo, é o jeito de se sentir conectado com as outras pessoas, que, desconhecidas, verdadeiramente nos aparecem irmanados pela vida que repartimos. Bem ao contrário, na cultura americana, em diferentes estados, cansei-me de ver no verão janelas, varandas, e até jardins de gramados reluzentes, mas sempre vazios. Minha filha, quando ainda pequena, queixava-se da aridez das vizinhanças, chegando`as vezes a ter medo de que fossem assombradas.Por minha vez, me chocava pensar que toda o trabalho de jardinagem investido no verde vizinho e no colorido das flores era so para bem impressionar os outros, para responder a uma imagem, e não para ser lugar de relaxamento e divagação, como as varandas de Barcelona. Preocupando-se sempre com o juízo alheio, americanos não apareceriam de peito e barriga expostos, a não ser numa piscina.Do mesmo modo, não olhariam para o que em princípio não lhes diz respeito, assim como tomam qualquer olhar casual de outrem como uma invasão `a sua privacidade.
Na cultura americana, em que ninguém tem tempo pra nada a não ser para o que leva a alguma coisa, olhar para quem não se conhece parece pecaminoso. As pessoas tanto se focam no juízo alheio, que pra eles não existe olhar desinteressado.
No Midwest americano, a região mais conservadora do país, tive a impressão de que cada pessoa é polícia do seus semelhantes, arquivando tudo o que neles se desvia dos moldes previsíveis de comportamento, mesmo que não chegue a quebrar leis. A cultura americana, excelente para a produtividade, parece só enxergar na realidade objetivos a serem alcançados. Onde está a pausa do espírito, a oportunidade de se botar de lado de toda transitoriedade e sentir-se igual a seus semelhantes, independente de saber quem são, quanto ganham, e quanto “valem”?
Refletindo que para o espirito pragmático, só se deve ser feito o que leva “a alguma coisa”, e que essa “alguma coisa” é um resultado visível, definido e portanto finito, como os resultados do progresso tecnológico, lembrei-me de uma tia americana, excelente senhora, que está sempre sob o jugo do dever, mantendo a casa impecavelmente limpa a qualquer hora, cozinhando para todos em dias comemorativos, jamais criticando alguém, e nunca parecendo se entregar ao “excesso” de meramente se divertir. Tradicionalmente católica, um dia, porém, confessou não entender, na parábola Marta e Maria, como Jesus defendeu Maria, ao ouvir Marta se queixar que esta, absorta nas palavras do Mestre, não a estava ajudando nas tarefas domésticas, “Marta, Marta”, disse o Mestre, “voce esta preocupada com muitas coisas, mas só uma é necessária. Maria fez a melhor escolha, e isso não será tirado dela.”
O que é espirito não pode ser roubado, ou extinto. As palavras do Senhor viveriam pra sempre, na alma de Maria. O trabalho doméstico de Marta, por outro lado, seria constantemente destruído pela poeira e pelo tempo, como se nunca tivesse sido feito.
Sem querer, obviamente, dar ao nosso Aninho, ou ao que se contempla das varandas de Barcelona, a mesma importância das palavras de Jesus, sei, entretanto, que mesmo sem ser útil e não levar a “nada”, nem um e nem outro serão tirados de mim.