Maria Clara Gueiros e Mantras do Humor
Quando conheci Clarinha, ela e meu irmão Edgar, tinham começado a namorar. Ja tendo me mudado para os Estados Unidos havia muitos anos, eu, que sempre admiro a arte dos bons atores e humoristas, não estava por dentro das revelaçōes que floresceram depois que deixei o país, por causa de uma resistência inata a assistir televisão, que entretanto não é parte de nenhuma posição crítica contra quem assiste. Quando morava no Brazil, eu ainda acabava seguindo tal novela, ou programa, na carona de outros, mas aqui nos Estados Unidos, nunca. Ainda por cima agora, que a imagem e burrice do Trump é tão frequente no vídeo, como já foi a do repulsivo Bush.
Sem saber, então, que Maria Clara Gueiros era uma estrela, já fiz ideia do seu talento, mesmo antes de encontrá-la pessoalmente, pela descrição de Edgar, cujo senso de humor é dos que mais admiro, "... tem gente que pode falar qualquer coisa que ja sai engraçado...Clarinha é assim, parece que basta abrir a boca, e seja lá o que diz já sai com humor e espirituoso...".
De fato. Sendo tão companheiros, Edgar e Clarinha ja fizeram muitas visitas a pessoas chatas, do tipo que alugam os seus interlocutores com uma conversa que só interessa a eles mesmos, e, sacando ou não, continuam falando sem parar. Contando uma dessas visitas, Edgar me disse que quando submetida a um desses monólogos absurdos, Clarinha diz pra si mesma, ou pro vento, ou melhor, para os deuses do bom senso, numa voz bem suave e fina (que o chato em questão não ouve) sublinhada pela expressão de total desapego, que só ela sabe fazer tão adequada, "Foda-se!..."
Morri de rir, visualizando tantas ocasiōes dignas desse foda-se.
Muita gente pode achar que dizer tal palavra contra pessoas que falam, sem poder ouvi-la, não deixa de ser ridicularizar essas pessoas pelas costas, mas o fato é que estas não ouviriam nada construtivamente crítico sobre sua atitude auto-centrada, mesmo que gritado, ou, ao contrário, cuidadosamente explicado. O Foda-se, então, serve a quem o exclama, extravasando-o e ganhando a força de um mantra, enquanto invocação do que me referi como deuses do bom senso, quer dizer, como chamado - lembrança da qualidade de auto-critica, ou melhor consciência de si e dos outros. O tom e expressão com que Clarinha o exclama, tornando-o engraçado e querido, redime a agressividade da sua mensagem em comum com, "...E daí?", ou, "...Ninguém tem interesse em ouvir o que vc esta falando!...", frases que somente ofenderiam sem causar melhora, ou alívio, a ninguém. Mas o Foda-se, de Clarinha, transmitindo crítica, ao mesmo tempo que sendo humoristicamente fofo, se torna um mantra, ou palavra que, aliviando quem a pronuncia, tem também a dimensão metafísica de ser prece, nesse caso, prece contra a auto-importância que resulta de desmesurado apego a si mesmo.
Foda-se é um verdadeiro mantra de desapego. As ocasiōes em que, sozinha, visualizei dignas dele, foram de grande auto-ajuda, por incluir aquelas em que eu mesma, preocupada com bobagens que nada mudariam, nem no campo das ideias, nem no da prática, me dei conta de como estava sendo auto-importante. Mais notadamente, antes e durante rituais de Ayahuasca. Antes, quando o medo do que viria pela frente, na antecipação de não me sentir bem ou de vir a ver coisas que não gostaria, ou até de pirar de vez, se transformou em riso, na lembrança do foda-se. Durante, quando eu, na minha necessidade de controle dos meus objetos pessoais mesmo sem precisar deles, temia ter perdido de vista o celular, ou a garrafa d'água, e estava muito na força para conseguir mudar de posição, quanto mais para procurá-los, e a lembrança do foda-se não so me tornava consciente do meu excesso de apego, como o dissipava, transformando-o em gargalhadas. Também me ajuda frequentemente na fase mais calma e reflexiva dos rituais, quando saco fraquezas do orgulho e do ego, não so minhas, como de outros, e a invocação mental do foda-se pra tudo aquilo se torna um grande alívio.
Sem ser erudita no assunto, ouso dizer (ou repetir, o que no mínimo ja devem ter dito...pois pra começar nem li Bergson) que o humor, em si, já é desapego da lógica que nos acorrenta, e por conseguinte, da gente mesmo. Mas humor, quando repetido fica sem graça, enquanto no que Clarinha me explicou chamar-se bordão, eu vejo, ao menos nesses que ela inventa, a dimensão auto-renovadora (são engraçados a cada repetição) curativa, e metafísica, de um mantra. O seguinte, que me vem agora `a mente, é o Sai daqui!, que ela exclama com uma voz ainda mais fina, numa irritação que, caricaturada, parece caçoar de si própria, ao mesmo tempo que da chatice de quem quer afastar.
Nesta época, em que somos constantemente solicitados, chateados, e interrompidos, com os milhões de alertas digitais que nos rodeiam, nessa velocidade de comunicação que consegue ser mais invasiva que nossos próprios pensamentos, que dilacera com frequência, sempre há alguém pra representar novas e injustas interrupções e merecer um Sai daqui! expressado ao modo da Clarinha. A lembrança da intonação que ela faz, e que, com irritação caricaturada, consegue rir de si mesma no próprio rejeitar de quem lhe está sendo insuportável, é pedido de cada macaco ficar no seu galho, como prece de diferença na própria igualdade : Vá pro seu lugar, e me deixe em paz no meu!
Alivia pelo humor, satirizando o próprio explodir de quem o exclama, enquanto repele a chatice de quem o levou a exclamá-lo, sendo portanto mantra de justiça; repetitiva reza a valores invisíveis, com sua respectiva dimensão metafísica.
Se vou usar novamente o exemplo de um ritual de Ayahuasca, para ilustrar como a lembrança do Sai daqui me ajudou, não é por só conseguir ver mantras nesses bordões sob o efeito do chá, mas, bem ao contrário. Aquilo que nos ajuda no confronto com a força do Ayahuasca, quando, entre medo e glória, nos encontramos muito mais sensíveis e perceptivos, pode nos ajudar em milhões de outros casos, que estão longe de tal extremo.
Voltando então, ao Sai daqui, que corresponde ao Pelo amor de Deus vai se foder!!!de meu filho Chris, que o exclama num desespero cujo pique contrasta súplica e agressividade, são lembranças que cabem como uma luva, quando penso no ritual de Ayahuasca dessa recente visita minha ao Brasil. Nesse ritual, uma dessas pessoas que se consideram eleitas pelo chá era uma mulher que se achava com o dever de inspirar todo mundo, acompanhar qualquer um ao remoto banheiro, ficar esperando como uma sentinela, e encher o saco com seu ar condescendente. Num dado momento, ela decidiu sair de seu lugar no circulo, e vir me doutrinar com uma série de cliches, ( o sagrado feminino em todas nós...jogue a fraqueza fora e bla bla bla) quando eu estava no pique da força. Sob várias visōes reveladoras, tive que fazer um esforço imenso para sair de dentro de mim e ouvir o que ela me dizia, pra finalmente realizar que não era nada. Vai se foder pelo amor de Deus, em total exasperação, e Sai daqui!, no tom de nervosismo fofo na voz de Clarinha me vieram `a cabeça, me acabando de tanto rir.
Assim, tenho que repetir: o que consegue ser mantra sob Ayahuasca, mantra sempre será!