Bowie é artista, Picasso era Anjo

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Difícil pensar em outra coisa que não ele. Levei Bowie para passear la fora pela primeira vez, uma semana depois de ele ter tomado todas as suas vacinas, como nos foi recomendado. Nala e ele, cada qual na sua coleira, que eu segurava ao mesmo tempo. Nala sempre me fazia ir devagar, porque adora cheirar a terra a cada passo, ou as plantas, ou as pedras em que outro cachorro deixou sua “lembrança”. Mesmo que os outros cachorros tenham deixado sua igualmente lembrança/saudação naqueles locais horas, quem sabe dias antes, a comunicação que ela tem com cada um não deixa de ser imediata, pois que pelo olfato, assim ela também deixa sua resposta para cada qual em cada lugarzinho, depois de te-lo aspirado por longos momentos. Ela bate o seu “papo”`a distancia e ao mesmo tempo diretamente; pelos caminhos imediatos do corpo.

Só eu tinha saco de dar pra ela essa colher de chá a ela e esperar o tempo que fosse preciso. Nala é do meu filho, que mora na Califórnia. Certa vez, em que ele estava aqui e me acompanhou passeando com ela, reprovou a minha tolerância, quando me viu parar o tempo que ela queria num só lugar, obedecendo os desígnios que ela própria decidia, “Mãe, isso é o seu passeio, e não o dela, ela que tem que te acompanhar, em vez de voce esperar ela toda hora!”, a que respondi, ” Acho que é o passeio dela, pois se não fosse por causa dela, eu nem estaria caminhando aqui fora”.

Uma vez que Bowie, cujo tamanho é um terço do de Nala, virou parte do passeio, tudo mudou, sei la se por competição entre os dois, ou colaboração canina. Ele vai pulando pelos gramados igual a um coelho, super flexível e feliz, enquanto Nala anda mais depressa e para de tanto cheirar, sem deixar, porém, de “ir ao banheiro”. Mas Bowie, extasiado com tudo que vê, não faz pipi ou cocô nem uma vez. Além disso, só para diante de flores, que são bem variadas no nosso caminho. Quando o vento sopra as pequenas pétalas dos lilás perfumados, que como confetes da natureza enchem o ar, espalhando-se por direçōes diferentes numa dança só deles, que não precisa de “carnaval”, Bowie, extasiado, até se senta pra observar melhor. Nala então se adapta ao seu ritmo.

Pode-se perguntar como que um cachorro pode ser poeta. Do mesmo modo, ou aliás, no mesmo molde de cristalização mental, quem está vendo a magnífica série do National Geoghraphic sobre a vida de Picasso, pode também perguntar como que um cara como ele, que em várias ocasiões tinha mais de uma mulher, e facilmente mudava de uma pra outra, dizendo-lhes muitas vezes mentiras pra encobertar o que ia fazer, podia ser um anjo. O fato é que todas as suas mulheres não podiam se resignar a perde-lo, e a única que deixou o orgulho de lado e encarou preferir “dividir” ele com outras, se fosse o caso, a não ter nem uma parte dele, foi uma sábia. Pois Picasso amou melhor cada uma delas, mesmo que simultaneamente, do que a maioria dos homens consegue amar uma única.

Dava à sua arte um poder místico de exorcizão, culpando-se do que acontecia a este ou aquele amigo, durante pausas em que parava um pouco de pintar. O Picasso que ele tanto afirmava não era o Picasso egoico, e sim o cumpridor de uma vontade além dele mesmo; a vontade de Deus para ele. Por isso, quando liga, ainda moço, a desdita de algum evento a Deus te-lo punido por não ter pintado, o cara que lhe pergunta, “Voce acha que Deus esta lá ligando que o grande Picasso não tenha feito a pintura perfeita?” deve ter feito a maioria das pessoas que assiste o show concordar com sua pergunta. Mas estão errados. Muitos artistas sentem um poder exorcista no seu trabalho.

No romance mais conhecido de Charles Morgan, Lord Sparkenbroke, o personagem principal era poeta, e quando conseguia escrever se sentia absolvido. A manifestação da criatividade, para cada pessoa criativa, é vontade de Deus. Como dizia Proust, a arte é o verdadeiro Julgamento Final.

Assim como muitos tem direito de achar, de acordo com os limites da sua visão do mundo, que um cachorrinho não pode ser poeta, outros mais tem, pelo mesmo motivo, direito de interpreter como megalomania a integridade de um artista, na certeza que tem de sua missão; de ser escolhido.

O fato é que Picasso provou ser um gênio com a sua produção divina, e Bowie um serzinho que reverencia a vida, com a sua inocência !

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Eleonora Duvivier