De Pássaro a Espírito

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Estava no quintal com os dois cachorros, Nala e Bowie, para que eles fossem ao seu “banheiro” natural, e na espera, eu poder fumar um charutinho. Bowie sabe que foi feito para ser mimado; sua raça, Cavalier King Charles, ganhou esse nome porque o rei Charles não ia para lugar nenhum sem a companhia de alguns desses cachorros. Bowie tem 6 meses, é super mimoso, ao mesmo tempo que` avido caçador. Quando caminho com ele pela vizinhança, tenta abocanhar tudo que é menor que ele, de formigas e borboletas a esquilos. Nesses momentos, puxo-o pela coleira. Mas como o quintal é fechado, nem ele, nem Nala, precisam coleira.

“Quando vão fazer o que tem que fazer?”, perguntava- me, enquanto os assistia, sentada no banco que balança.

Num dado momento, em que Bowie fuçava à volta de uma arvore, ergue-se um passarinho de trás dela, num voo rasteiro de filhote, que o levou até o canteiro do outro lado, onde ele se escondeu sob um emaranhado de arbustos. Bowie é super veloz, tem uma coluna super flexível e corre aos pulos, como um coelho. Rapidamente alcançou o ponto em que o passarinho se escondera, e de onde eu estava, só podia vê-lo de costas, examinando os arbustos.

Sentada no chão, Nala, que `as vezes também tenta caçar, só fazia assistir, ou por indiferença, ou por ter compreendido que não lhe permitimos matar bichinhos. Na fração de segundos em que vi Bowie sobre a coberta verde do passarinho, me lancei sobre o local, com o coração na mão, ja imaginando ter que libertar o filhote dos dentes caninos, ou vê-lo sangrando, na terra. Cenas de correr para emergencia veterinária, Steve dirigindo, e eu segurando nas mãos a agonia de um pássaro; talvez vendo-o morrer antes de la chegarmos, ou de nem precisarmos ir, ele aparecendo na terra já destruído, assim que eu levantasse Bowie dali, se alternavam na minha cabeça, e nos sobressaltos do meu coração.

Naquele breve instante, vivi um dia inteiro de sofrimento, e respirei fundo, no momento definitivo… Era agora, quem sabe tinha chance de… Agarrei Bowie pelas costas, e o suspendi com as duas mãos. O pássaro, que era um Robin, se encontrava ainda de asas semi-abertas, quase deitado entre a cerca e os arbustos, bico aberto, olhos assustados, na entrega do desespero. Uma das asas estava mais aberta que a outra, e me fez temer que Bowie a tivesse quebrado, mas não vendo resquícios de sangue, nem ouvindo pios de dor, libertei a mão esquerda, envolvendo o pequeno pássaro, e o levantando dali, enquanto equilibrava Bowie, pressionado sob meu braço direito.

Bowie de um lado, passarinho assustado de outro, determinação aqui, fuga ali, ferocidade à direita, medo á esquerda, rasgando-me em duas para mante-los afastados, a sem poder libertar nenhum, antes de chegar de volta `a porta da sala, e fechar Bowie do lado de dentro. Foi então, que vi outros Robins pousados na cerca, acompanhando o que se passava, como se fossem a familia do passarinho.

Um deles olhou para mim fixamente, e sua cabecinha cor de terracota realçava os dois pontinhos de luz de seus olhos penetrantes, cujo brilho cintilante vinha daquele ponto que, profundeza de seu ser, e altura do céu, o lançava rectilíneo, determinado, e intenso, dentro da minha alma, refletindo, na gratidão dourada do final da tarde, sua mistura de alegria, limpidez, e certeza.

A mensagem daquela carinha iluminada e suave tinha a força de ser inexorável, e o poder de ser extrema. So podia vir da mãe do passarinho. Sob um halo de sol, o seu agradecimento ecoava no languido fosforescer daquele final de tarde, iluminando e celebrando o salvamento do passarinho. Vi tudo tão rápido, enquanto ainda equilibrava Bowie se esperneando, e segurava o pássaro resgatado, ao mesmo tempo. Quando, outros de seu tipo se aproximaram, como que clamando a sua devolução, eu ja estava fora do canteiro, e o deixei na parte de cimento do canto do quintal, pouco antes de alcançar a porta da casa, com o sedoso e escorregadio Bowie debatendo-se vigorosamente para escapar, finalmente conseguindo aterrisar no chão, logo depois que entramos.

No simbolismo psicológico, pássaros representam espírito. No contexto utilitário da sobrevivência, eles são vistos ou como presas ou como predadores. Mas o que senti ao salvar aquele Robin, entre seres e elementos da natureza conspirando a seu favor, mais do que alívio, foi um momento único de liberação. Predador ou presa, animal ou símbolo, o pássaro que salvei também me salvou!

Eleonora Duvivier