Espiritualidade Agressiva
Chris, meu filho, se saiu com a expressão do titulo, para definir a attitude de muitas pessoas em Boulder, esta cidade idilica no vale entre as Montanhas Rochosas, abrigando milhões de pessoas que se acham, se não iluminadas, no caminho da iluminação. “ Pra qualquer reunião, ou bate-papo, esse tipo de gente vem prefaciar o evento com mil termos absurdos, tipo, "Let's hold the space" (Vamos segurar o espaço… vamos lembrar que somos todos conectados com a criação original, vamos isso e aquilo”) disse Chris, e concluiu, “ Eles vem pra gente com uma espiritualidade agressiva!”
Achei a descrição perfeita. Parece que espiritualidade virou critério de diferença entre quem ta por dentro e quem não está, como uma moda. Conhecemos pessoas que participam de círculos (supostamente espirituais) de maconha, de respiração, de peyote, de meditação “transpessoal”, círculos de honrar o sagrado feminino, círculos de tudo que se pode imaginar, e se não menciono rituais de Ayahuasca entre eles, é por não querer jogar o sacramento da Floresta no mesmo saco que, “multi-místico”, lembra os pacotes “combo” do Mac Donald’s, que contém batata frita, Coca-Cola (tamanho grande, claro) sanduiche de tres camadas, bacon, ketchup, etc.
Nem de propósito, quando estivemos na California nos feriados de Natal e Ano Novo, encontramos, na casa que nos foi alugada, milhões de exemplares de um livro de ensinamentos espirituais, entulhados nas prateleiras da garage. Lendo o nome da autora, Chris, que alugou a casa pra nós, viu se tratar da dona do apartamento. Peguei um dos volumes pra dar uma olhada, mesmo que a capa, com figuras de eixos geométricos naquele tom roxo de luz de danceteria contra um fundo negro também de nightclub, tenha me parecido super pretensiosa como ilustração do título pomposo do texto, que misturava termos científicos e espirituais, num mumble jumble esquizofrênico.
Pra dar uma ideia geral do projeto, a autora definiu graça religiosa da seguinte maneira:
“Graça é o girar dos campos de torção que formam a matéria, a realidade, e a experiencia”!!! (Entenda isso e depois me conta se vc parou no hospício ou na polícia...)
Pra completer a ideia geral do livro da mulher, informo que nas credenciais do cara que escreveu o prefacio, foi mencionado o titulo do livro que ele próprio escreveu, e que em ingles transmite melhor a pretensão de incluir a ciência Física na esfera religiosa, e dar a essa esfera a exatidão de uma fórmula, para que todos pensem poder aprende-la e botá-la em prática em benefício próprio: “The Physics of Miracle”.
Mesmo assim, li passagens aqui e ali do livro da proprietária, e logo o devolvi `a poeira da prateleira.
Até então, eu tinha achado aquela casa perfeita, encarando o mar tão bem, com uma divisão do espaço interno que transmitia paz. Podia se ver diretamente o por do sol de cada uma de suas salas comunicantes, como também da varanda em comum a que davam acesso. Podíamos estar todos juntos naquela área sem nos sentir um em cima do outro, repartindo o mar, o céu e o sol, enquanto fazíamos coisas diferentes. Me dei conta de como é bom poder ter pessoas que amamos simplesmente respirando sob o mesmo teto que nós, independente de qualquer comunicação verbal. Nós quatro, sem muito papo, mas com muito amor. Pensei que quem morava ali devia ter uma cuca boa. Mas depois que vi aquele livro, que no mínimo foi escrito ali, fiquei me perguntando como um visual tão esplendoroso se deixara ser mero pano de fundo pra tanta ambição. Pano de fundo pra espiritualidade “de metralhadora em punho”…
Nem a paz da linha do horizonte, nem a divindade da vista ininterrupta do mar pôde fazer alguém pré meditado baixar as armas. “Mas isso é California, isso é Estados Unidos, after all,” pensei. As armas americanas nunca são baixadas. Em relação `a espiritualidade, elas se intitulam de “ciência”, pois, diferentemente da liberdade do espírito, ciência é algo que controla e se pode controlar. Algo que tem regras a se aprender, obedecer, e repetir infinitamente.
Na terra do controle remoto, deve se tentar fazer a espiritualidade acontecer, como se apertando um simples botão, ou tocando num icon de iPhone. Mas pra virar passe tecnólogico, ela tem que ser primeiro transformada em ciência, algo sem mistério pois que controlável e ensinável, tout simplement.
Obviamente, o livro da proprietária continha promessas veladas de sucesso financeiro. Quem quer controlar certamente quer dinheiro, assim como quem quer através de um livro, ensinar a controlar. Mas quem tem saco pra tentar aprender um controle que não existe, o de um mundo que deve ser a libertação de todo controle, é incapaz de baixar as armas, e merece se enganar com aquele livro.