Papai, Lucio Costa, e o Sentido do Sagrado
Ainda me lembro do Cristo mais belo que ja vi pregado `a sua cruz, e expressando em seu rosto tombado, a união de majestade e dor. Era uma escultura gigantesca, bem maior que tamanho natural, que ficava na parede da sala de jantar, cujo pe direito era bem elevado, de nossa casa em Petrópolis, ao lado da qual, meu pai, escultor, tinha um grande atelier. Almoçávamos e jantávamos sob a grandeza do Cristo. Com não mais que cinco anos, me lembro de como era bom deixar os olhos seguir qualquer das linhas daquele corpo branco de gesso, percorrer os braços abertos, o pescoço, o belo rosto, os espinhos que, em torno de sua cabeça, irradiavam dele mais grandeza do que a coroa de um rei.
Verdade que papai, cujas sobrancelhas caídas, sobre olhos azuis sofridos, numa eterna expressão de mártir, dera seus próprios traços ao rosto santo, e talvez na minha cabeça infantil os dois se misturassem um pouco, mesmo que papai, aos olhos de todos, tivesse tudo para ser considerado “mimado” pela vida. Invisível, a cruz que carregava era sua própria familiaridade com o caráter cego da dor.
Papai fez tantas esculturas religiosas quanto fez corpos femininos sensuais, cuja beleza, como que religião, ele cultuava. Declarava-se ateu com orgulho, e durante minha adolescência, fase em que geralmente procuramos o porque de tudo, tive com ele várias discussões sobre a existência do Criador. No começo, me frustrava. Na sua certeza da negação do Espírito, papai falava como se fosse omnisciente. Pouco a pouco, percebi, no orgulho do seu ceticismo, mais uma das ramificações de um machismo exacerbado. A aridez dos argumentos biológicos que ele usava, a exatidão anti poética da realidade vista pela ciência, a insistência em “ver para crer”, na sua maneira de falar, pareciam expressar, mais que qualquer coisa, o fato de que um verdadeiro homem não precisar “muletas” no “outro mundo”, ou proteção de um pai celeste.
Desisti, então, de discutir com ele. Mas estivesse papai esculpindo nus, fazendo bustos de pessoas conhecidas, esculturas abstratas, ou arte sacra, era o Cristo que ele fazia com paixão; era com o Cristo que ele realmente comungava, compartilhando o mesmo rosto.
Havia um padre, amigo da familia, que lhe encomendava arte sacra e um dia pediu que papai fizesse uma estátua da Virgem em tamanho pouco maior que o natural. Eu e meu irmão, ainda bem pequenos, nos quedávamos ao lado dela, ainda em gesso, tão alva, simples, e contida na sua própria doçura, que era como se estivéssemos diante de uma santa verdadeira.
Eventualmente, soube que logo que o padre viu a escultura pronta, exclamou (sem por isso, deixar de aceita-la) “ Que o Sr. faça Jesus com o seu rosto, Dr. Edgar, se pode entender, mas a Virgem, pelo amor de Deus!”
O fato é que a partir de seus próprios traços, papai conseguia dar, fosse à Mãe, ou ao Filho, intensidade religiosa.
Isso me faz pensar no que disse uma vez Lucio Costa, citando Le Corbusier, para explicar a sua própria posição religiosa, disse-me um dia: “Sou ateu, mas tenho o sentido do Sagrado” …j’ai le sens du Sacré.
Numa humildade que, infinita, era também convicção, Lucio libertava a fé verdadeira dos limites das afirmaçōes verbais, quer dizer, do reino do ego. Entre pensar que se tem fé e tê-la realmente, existe o mesmo abismo que separa o ato de respeitar de um mero obedecer de regras, que distingue o amor do medo.
Enquanto afirmações de fé, resultando muitas vezes do medo, podem nao expressar mais que a necessidade de ter fé, o sentido do sagrado vive a omnipresença divina, a generosidade que vê a grandeza no pequeno e no grande, no simples e no complexo, no poder e na humildade.
A maneira como papai nos transmitiu importância moral em tudo que nos ensinou revelava claramente o respeito que ele mesmo tinha por princípios abstratos e invisíveis, quer dizer, por uma autoridade maior. Não esqueço o dia em que, na praia com ele, e meu irmão, presenciamos, ao nos afastarmos de um castelo de areia que havíamos feito, um grupo de meninos o destruindo a pontapés. Papai parou, para dar devida importância ao que veio a nos dizer, e com tanta calma quanto convicção, declarou: “Só se deve destruir alguma coisa, se puderem fazer outra melhor...”
Bastou aquela vez. Nunca mais esquecemos aquela lição, não porque se tratou de um decreto de papai, mas porque, no respeito pela criação que ele mostrou, conseguiu transmitir o sentido do sagrado. Não só entendemos a sua mensagem, como percebemos o ridículo da raiva, frustração, e inferioridade no vandalismo
Não é qualquer um que tem o sentido do sagrado. Muitas pessoas que se pensam religiosas, não o tem. Tenho certeza de que se o mundo inteiro fosse ateu, mas todos em que nele habitassem soubessem o que respeitar, o planeta estaria hoje em muito melhores condiçōes.