Poema de Amor entre Criatura e Criador
Através de um estudo da oração de Yeshua (Jesus) nas suas palavras originais em Aramaico, se descobre uma grande afinidade entre sua mensagem e a das posturas religiosas orientais, em que o corpo, a dimensão orgânica, tem tanta importância quanto a mente, e a introspecção aponta para diversos tipos de meditação que nos ensinam a buscar nossa essência, olhando para dentro de nós mesmos. Nossa essência; nosso eu profundo e verdadeiro: nossa alma. Do mesmo modo, redescobrimos Jesus numa liberdade poética que, não dogmática ou tampouco discriminante, tudo reconcilia na divindade, expressando sua pureza imaculada, através do primitivismo versátil de sua língua original.
A tradução ocidental que temos dessa oração reafirma a divisão entre matéria e espírito, paraíso e terra, coisas do céu e coisas do mundo, como geralmente faz o pensamento puramente racional e julgador, que só consegue entender o “sim”, através da sua oposição ao “não”, isto é, só consegue “ver” a realidade através de uma constante polaridade de extremos. Desta feita, nos coloca de um lado como pecadores carentes , e estabelece do outro lado a divindade como fonte de ajuda. Claro que ao nos infantilizar dessa maneira, a ocidentalização da prece de Cristo nos transforma em pobres pedintes, empurrando para o Pai toda a responsabilidade da nossa transformação espiritual.
Mas a prece original de Yeshua, ao invés de simples pedido a uma divindade externa, que existe supostamente muito acima de todos os humanos, nos entrelaça com a fonte de criação, ambos agindo juntos, criaturas e criador identificados na reciprocidade do mesmo amor. Claro que a experiencia desse amor corresponde a um estado de Nirvana, `a lembrança de que moramos em Deus, assim como Ele mora em nós. Ja dizia o poeta Kabir, “Todos sabemos que o pingo de água se mistura no oceano, mas poucos sabem que o oceano se mistura no pingo de água.”
Antes de mencionar exemplos que ilustram o que disse acima, acho necessário informar que, de acordo com o livro Living the Prayer of Jesus, de Stephanie Rutt, o Cristianismo, diferente de outras religiões, que resultam da transformação de mitos em dogma, nasceu da própria experiencia mística através de Jesus. No seu maravilhamento, plenitude e temor, essa experiencia mudou a vida dos primeiros cristãos, que se tornaram apóstolos de Cristo. Sem forma verbal, ela só podia ser expressa na exclamação do seu próprio êxtase, “Ahhh…”. Considera-se que o desejo de registrar, ou dar forma `a tal revelação levou um dos discípulos a pedir que Jesus lhes ensinasse a rezar, “Senhor, ensinai-nos como rezar” (Mateus 6:9-13 e Lucas 11:1)
As palavras com que Yeshua respondeu ao pedido compōem o poema que mantém viva, a exclamação de êxtase original, a qual, na tradução para o grego, e depois para outras línguas, foi perdida.
No original aramaico, Yeshua começa com ela, na primeira palavra da primeira frase de sua oração: Abwoon d’bwashmaia (Our Father, who art in heaven).
Abwoon, que se pronuncia, Ahh bwoon. Ahhh nos lembra o absoluto, o único. Bwoon evoca o processo continuo do nascimento pelo som e vibração através da respiração, num processo em que a vida é recriada a cada momento. Enquanto Abwoon se refere `a fonte original de criação, Shmaya, parte da segunda palavra d’bwashmaya, indica a manifestação do absoluto através da respiração, vibração, luz e som.
Pode-se dizer que estamos mais intimamente conectados com nosso criador pelo próprio respirar, que é a função mais elementar de nosso corpo. A consciência desse respirar nos leva ao laço mais intimo e recíproco com Ele. Só se pode exclamar Ahhh no exalar de um inspirar. Yeshua queria que seus discípulos tivessem uma experiencia visceral da divindade a que pertenciam. Queria que eles se sentissem, também, respirados por Deus. Essa interação no processo contínuo de fazer nascer pela respiração lembra o místico cristão do século Xlll, Meister Ekhart, ao dizer, “Somos todos mães de Deus.”
Com dimensão tanto orgânica quanto espiritual, acho que não pode haver entrega tão completa, quanto sentir-se respirado por Deus.
A oração continua, Nethquadash shmakh, que, traduzido para “Santificado seja o vosso Nome”, tem também o significado de criar espaço, no caso para Deus dentro de nós, pois Nethqadash é tambem interpretado como o reservar de espaço a ser preparado no chão para uma planta especial. Nesse caso se relaciona `a preparação, na nossa própria vida, para nos tornar capazes de ouvir a voz, ainda pequena, dentro de nos. A raiz shm in shmakh se refere ao nome divino. Yeshua esta lembrando aos discípulos manter o nome de Deus fora de qualquer comportamento inadequado, e “… como a divindade que os chamou, sejam distintos na sua maneira de viver. Pois está escrito, “Santifiquem-se e se consagrem, porque eu sou sagrado” Pedro 1, 15-16.
Desde que a conexão com nosso criador já existe dentro de nós, precisamos cultivar e nutri-la, quer dizer, manter nosso foco em sua única direção. Significa desapegar-se de muita coisa que pode impedir o seu crescimento, envolvendo muito do que, até então, podia até ser habitual.
Como sempre pensei, da minha própria interpretação de Jesus, ele estendeu a todos nós, que queremos receber, o seu próprio “parentesco” com o Pai, assim como o papel de cada um, em relação a Ele.
Desenvolvendo o poema de interação amorosa entre criatura e criador, o que conhecemos como “Venha a nós o vosso reino”, correspondendo a Teytey malkuthakh, sugere, de Teytey, além da tradução para “venha”, imagens de desejo mútuo relacionados `a câmara nupcial em que serão satisfeitos, dando começo ao nascimento. Malkuthakh, por sua vez, pode ser traduzido como reino, mas também involve, na raiz malkh, o significado aconselhar, expressando o reino de Deus como o estado em que a direção do criador é realizada. Teytey Malkuthat pode então ser também interpretado como, “Alinhe-se com o Criador”.
Trate-se de se alinhar com Deus, ou de se identificar com a sua presença no amor recíproco da câmara nupcial, Yeshua fala de uma comunhão, o ato de amor mais imediato e completo com o criador. Somente na comunhão todos os limites entre os seres que comungam são abolidos, seja literalmente, no atavismo da comunhão canibalista- a qual, aliás, Yeshua se remete na última ceia ao dizer aos discípulos que bebam o seu sangue e comam o seu corpo em memória de si, um comer e beber do que, na transubstanciação da Eucaristia, é considerado pelo catolicismo como sendo literalmente o corpo e sangue de Yeshua - seja na vivencia de um amor espiritual.
A frase seguinte da oração, traduzida para “Seja Feita a Vossa Vontade”, do original, Nehway tzevyanach aykanna, significa ” Manifeste a visão,” desde que tzevyanach significa vontade não apenas como uma afirmação do que se quer, mas como um tipo de desejo e cooperação harmoniosa que inclui disciplina. Concerne o desejo do coração além do estado ideal ou mental, enquanto Aikanna representa a vontade de consistência e estabilidade que o desejo do coração de Deus seja feito na nossa vida.
“Assim na terra como no céu”, do original d’bwashmaya, aph bharha, ( b’arh’are ahhhh) quando d’bwashmaya se refere `a luz, vibração e som fazendo o cosmos nascer, enquanto que aph bharha aponta para o suspiro dos humanos ao sentirem o suporte da terra sob eles, a frase original pode ser interpretada como, “torne-se o paraíso na terra”.
” O reino dos céus é aqui… agora “, disse Cristo no Sermão da Montanha, evocando a plenitude do momento presente, que é também buscada no Zen Budismo. Continuando, isto é, a desconhecer cisōes entre este mundo e o do espírito. Tornar-se paraíso na terra significa receber o que ja está em nós, a vontade divina para cada um, e dela agir com paixão.
“O pão nosso de cada dia, nos dai hoje”, traduzido de Hawvlan lachma d’sunqanan yaomana, também se interpreta, “Lembre-se da plenitude”, desde que Hawlan significa “dar”, e lachma traduz-se para “pão” mas também para “entendimento”, enquanto d’sunqanan significa recebermos o que precisamos sem acumulação, e yaomana se refere a “momentos iluminados e diários”. Vejo nisso a identificação entre a dádiva de pão e a de entendimento, comida e espírito, na plenitude de quando estamos iluminados.
“Perdoai as nossas dívidas”, from Washboqlan khaubayn (wakhtahayn), washboclan significando o “retorno a um estado original”, enquanto Khaubayin significa “dívidas”, na versão de Matteus, e “pecados”, na de Lucas. Mas do Aramaico, também significa “falhas”, “erros”, “ofensas acidentais”, “esperanças frustradas”.
“Assim como perdoamos os nossos devedores”, de, aykana, daph sknan shbwoqan l’khayyabayn.
Perdoar é se libertar. Aykana novamente nos indica que esse libertar-se deve ser consistente e regular. Perdoando, e daí, tornando-se livre, reconhecemos que o que ocorre internamente acontece, de imediato, externamente.
“E não nos deixe cair em tentação”, do original, Wela tahlan l’nesyuna, considerando-se que Wela tahlan significa não nos deixe entrar, enquanto Nesyuna tanto pode ser traduzido para “tentação” quanto para “esquecimento”, ou ainda, para “perder-se em aparências”, a frase original também pode ser interpretada como, “Resista ao esquecimento”, no caso, o da nossa própria verdade:nossa união com Deus.
“Tentação”, ou, l’nesyuna, sugere a possibilidade de nos perdermos nas aparências ligadas ao materialismo. Portanto, se deriva da prece Aramaica para a inexistência de qualquer entidade externa para nos “tentar”. Os estados de “tentação” são causados pelo nosso próprio esquecimento, que leva nossa atenção ao exterior mundano, desviando-nos de nossa plenitude interior.
” Mas livrai-nos do mal”, provém de ela patzan min bisha, em que min bisha, traduzido por ”mal”, também, significa “imaturidade”. Pois, enquanto estamos sincronizados com a presença interna da divindade, nossas palavras e açōes são adequadas em cada momento. Nesse caso, há abundância de sincronicidade, e experimentamos estar sendo levados pela divindade interna que nos respira para a vida a cada passo. Nossa “música” é então cantada por nosso criador, através de nós.
“Pois vosso é o reino, o poder, e a glória, para sempre, amén”, do original Metol dilakhie malkutha, wahayla, wateshbukhta, l’ahlam almin, Ameyn, (ahhh meyn) enquanto Dilakhie, significando “ Vosso é o reino”, mostra também a imagem de um campo fértil e abundante, e Malkutha se refere `a divindade que permeia a criação, Hayla, à força encarnada da vida em harmonia com essa criação, e Tesbukhta, traduzido por “Gloria”, evoca mais exatamente a imagem de uma música, gloriosa harmonia que retorna a divina luz e som à matéria em equilíbrio. As raízes da palavra também apresentam a imagem de um fogo generativo, que leva à admiração.
Assim seja. “O reino de Deus é aqui, agora”, pois é o amor entre o criador e a criatura, e além do esquecimento (Nesyuna) vive portanto dentro de nós.