ZOETROPE
Versão em português
Thursday, November 7, 2019
A Arte de se Vestir
Obviamente, chamar de “arte” uma de nossas atividades básicas diz respeito ao fato de que se vestir bem envolve bom gosto.
Mas neste texto, quero considerar, inerente ao bom gosto, a dimensão ritualística do que, aparentemente, não passa de uma feliz combinação de peças de roupa.
O que melhor expressa o que digo é a descrição de Marcel Proust sobre a mulher que ele, adolescente, admirava diariamente, passeando no Bois de Boulogne. A ex -cocote Odette de Crécy, então transformada pelo casamento em Mme Swann, é a musa que o jovem Marcel orgulhosamente acompanhava nesses passeios, e de quem diz, apreciando a sua indumentária :
“ Et je comprenais que ces canons selon lesquels elle s’habillait, c’était pour elle-même qu’elle y obéissait, comme `a une sagesse supérieure dont elle eût été la grande prêtesse:”“ Eu percebia que os princípios de acordo com os quais ela se vestia, ela os obedecia para si própria, como que a uma sabedoria superior da qual ela fosse a grande sacerdotiza:”
Ilustrando o que diz, Proust então descreve os lindos detalhes da vestimenta de Odette, como as minúcias no avesso de sua jaqueta, que teriam pouca chance de serem vistas por outros que não ela, ou seja, minúcias que existiam em si próprias, no pacto com a beleza e a qualidade, independentemente de qualquer finalidade exibicionista ou utilitária. Destinavam-se `aquelas que, do mesmo modo que Odette-ao ter escolhido a peça em que figuravam, sabia que praticamente ninguém iria poder aprecia-las- poderiam honrar, como sacerdotisas, uma realidade transcendente.
Dessa realidade vem o requinte das embalagens de cosméticos ou perfumes, as quais, uma vez extraído delas o produto, são destinadas `a lata de lixo. Steve Jobs explica ter exigido que a experiencia estética dos produtos Apple começasse a partir do contacto com a sua embalagem. Na mesma veia praticamente ritualística, muitas mulheres brincam com maquillage diante do espelho, fazem poses sem ter auditório, ou melhoram “selfies” que nunca serão vistos por ninguém. Em termos de utilidade, nada disso seria preciso. Mas Deus existe: A estética, que fala `a contemplação, está muito acima da utilidade, que responde `a finitude do tempo. O belo conta estórias, enquanto o útil instala pontos finais. O primeiro encanta, o segundo escraviza. Se um está alem, o outro vive aquém; o belo sendo excelência, e o útil cobrança, pois enquanto a utilidade aprisiona, a beleza liberta.
Thursday, November 7, 2019
A Mãe, o Filho, e o Espírito Santo
Dar `a luz é uma homenagem ao nascimento de Cristo, um convite a todas as mães e filhos a renovar a união mais perfeita, abnegada e humilde, a união de Cristo e Maria.
Cada recém nascido é imaculado e novo, e pertencendo inteiramente a Deus, é um projeto de Cristo. Ele/ela tem a oportunidade de dar `a sua vida um sentido, salvando-a de ser somente um resultado do acaso. Somente os frutos do acaso nada devem, enquanto que ser filho de Deus significa assumir total responsabilidade com algo que nos transcende, e por isso é missão.
A maternidade de Maria é a redenção do acaso, a sagração do Filho como pré destinado pela vontade divina.
Tornar-se mãe significa assinar um contrato com Deus, respeitando o limite entre ter nosso filho e a Ele entregá-lo, tarefa difícil que envolve amor e a sabedoria de se despojar. A maioria das mães infringe o contrato, seja por monopolizar o filho e planejar seu papel no mundo, ou por se tornar fatalista e até mesmo negligente. Mas no pacto entre mãe e Deus, o filho pertence a ambos.
Maria é o maior exemplo da união paradoxal de um amor absoluto pelo ser mais querido e a capacidade de deixá-lo partir. Ela soube, nas mais terríveis circunstancias, o momento em que seu filho foi só de Deus.
Devemos saber, a cada passo de nosso/a filho/a, até que ponto ele/ela está sendo insensato/a e até que ponto está inaugurando sua missão para com o mundo, quer dizer, quando devemos afirmar nossa autoridade, e quando devemos controlar nosso medo e deixa-los agir. Para deixa-los se confrontar com Deus.
A consagração da maternidade na figura de uma mulher pura, humilde e anônima, mulher que foi simplesmente o veículo da vinda de seu filho ao mundo, não revela de imediato o Cristianismo como religião feminista. Mas ao lado de toda humildade e resignação, Maria, de carne e osso, santificou o que chamamos de "destino". A presença paterna se divide por outro lado entre o pai social, São José, e o puro espírito que, criador, precisa do filho para vir ao mundo; para tornar real seu maior poder, o poder de salvação.
O C
Cristianismo santifica a função mais natural da vida, dando a todas as mães e a todos os filhos o direito de se aparentar com Deus.
Thursday, November 7, 2019
Papai, Lucio Costa, e o Sentido do Sagrado
Ainda me lembro do Cristo mais belo que ja vi pregado `a sua cruz, e expressando em seu rosto tombado, a união de majestade e dor. Era uma escultura gigantesca, bem maior que tamanho natural, que ficava na parede da sala de jantar, cujo pe direito era bem elevado, de nossa casa em Petrópolis, ao lado da qual, meu pai, escultor, tinha um grande atelier. Almoçávamos e jantávamos sob a grandeza do Cristo. Com não mais que cinco anos, me lembro de como era bom deixar os olhos seguir qualquer das linhas daquele corpo branco de gesso, percorrer os braços abertos, o pescoço, o belo rosto, os espinhos que, em torno de sua cabeça, irradiavam dele mais grandeza do que a coroa de um rei.
Verdade que papai, cujas sobrancelhas caídas, sobre olhos azuis sofridos, numa eterna expressão de mártir, dera seus próprios traços ao rosto santo, e talvez na minha cabeça infantil os dois se misturassem um pouco, mesmo que papai, aos olhos de todos, tivesse tudo para ser considerado “mimado” pela vida. Invisível, a cruz que carregava era sua própria familiaridade com o caráter cego da dor.
Papai fez tantas esculturas religiosas quanto fez corpos femininos sensuais, cuja beleza, como que religião, ele cultuava. Declarava-se ateu com orgulho, e durante minha adolescência, fase em que geralmente procuramos o porque de tudo, tive com ele várias discussões sobre a existência do Criador. No começo, me frustrava. Na sua certeza da negação do Espírito, papai falava como se fosse omnisciente. Pouco a pouco, percebi, no orgulho do seu ceticismo, mais uma das ramificações de um machismo exacerbado. A aridez dos argumentos biológicos que ele usava, a exatidão anti poética da realidade vista pela ciência, a insistência em “ver para crer”, na sua maneira de falar, pareciam expressar, mais que qualquer coisa, o fato de que um verdadeiro homem não precisar “muletas” no “outro mundo”, ou proteção de um pai celeste.
Desisti, então, de discutir com ele. Mas estivesse papai esculpindo nus, fazendo bustos de pessoas conhecidas, esculturas abstratas, ou arte sacra, era o Cristo que ele fazia com paixão; era com o Cristo que ele realmente comungava, compartilhando o mesmo rosto.
Havia um padre, amigo da familia, que lhe encomendava arte sacra e um dia pediu que papai fizesse uma estátua da Virgem em tamanho pouco maior que o natural. Eu e meu irmão, ainda bem pequenos, nos quedávamos ao lado dela, ainda em gesso, tão alva, simples, e contida na sua própria doçura, que era como se estivéssemos diante de uma santa verdadeira.
Eventualmente, soube que logo que o padre viu a escultura pronta, exclamou (sem por isso, deixar de aceita-la) “ Que o Sr. faça Jesus com o seu rosto, Dr. Edgar, se pode entender, mas a Virgem, pelo amor de Deus!”
O fato é que a partir de seus próprios traços, papai conseguia dar, fosse à Mãe, ou ao Filho, intensidade religiosa.
Isso me faz pensar no que disse uma vez Lucio Costa, citando Le Corbusier, para explicar a sua própria posição religiosa, disse-me um dia: “Sou ateu, mas tenho o sentido do Sagrado” …j’ai le sens du Sacré.
Numa humildade que, infinita, era também convicção, Lucio libertava a fé verdadeira dos limites das afirmaçōes verbais, quer dizer, do reino do ego. Entre pensar que se tem fé e tê-la realmente, existe o mesmo abismo que separa o ato de respeitar de um mero obedecer de regras, que distingue o amor do medo.
Enquanto afirmações de fé, resultando muitas vezes do medo, podem nao expressar mais que a necessidade de ter fé, o sentido do sagrado vive a omnipresença divina, a generosidade que vê a grandeza no pequeno e no grande, no simples e no complexo, no poder e na humildade.
A maneira como papai nos transmitiu importância moral em tudo que nos ensinou revelava claramente o respeito que ele mesmo tinha por princípios abstratos e invisíveis, quer dizer, por uma autoridade maior. Não esqueço o dia em que, na praia com ele, e meu irmão, presenciamos, ao nos afastarmos de um castelo de areia que havíamos feito, um grupo de meninos o destruindo a pontapés. Papai parou, para dar devida importância ao que veio a nos dizer, e com tanta calma quanto convicção, declarou: “Só se deve destruir alguma coisa, se puderem fazer outra melhor...”
Bastou aquela vez. Nunca mais esquecemos aquela lição, não porque se tratou de um decreto de papai, mas porque, no respeito pela criação que ele mostrou, conseguiu transmitir o sentido do sagrado. Não só entendemos a sua mensagem, como percebemos o ridículo da raiva, frustração, e inferioridade no vandalismo
Não é qualquer um que tem o sentido do sagrado. Muitas pessoas que se pensam religiosas, não o tem. Tenho certeza de que se o mundo inteiro fosse ateu, mas todos em que nele habitassem soubessem o que respeitar, o planeta estaria hoje em muito melhores condiçōes.
Monday, November 4, 2019
Canonizada por um Filho
Vovó nunca se recuperou ter se tornado mãe; ter expelido de si própria o que havia sido o âmago da sua carne durante períodos de nove meses. Suas crias vieram ao mundo, mas até o fim, ela se relacionava a eles como se ainda fossem parte de si. A angústia da cisão da carne, de ser cortada de partes dela mesma, torturou-a por toda a vida, manifestando-se como um mórbido medo de perda.
Sempre obcecada com os mais remotos perigos possíveis, em consequência de qualquer coisa que algum dos seus três filhos fizesse, seu esquartejado ser projetava a sua própria dor no mundo que os roubava dela, e a boa senhora só podia ver ameaças em todos os lugares. Se o primogênito fosse participar de um cruzeiro, ela o aconselhava compulsivamente a não discutir com ninguém a bordo, para que não fosse empurrado no mar. Se o mais moço não telefonasse todo dia, ela imaginava que ele tivesse se matado, etc.
Mesmo quando tudo corria de acordo com a rotina, ela tinha que exorcizar a compulsão de pensamentos repulsivos que irrompiam em sua mente, com imagens do seu pior pesadelo, imaginando-se sob mil tipos de torturas para salvar sua prole. Tal afinidade com a dor ia além da fantasia. Sua feroz devoção, oriunda desse sofrimento constante, como dor contra dor, dava a ela coragem de suportar qualquer coisa pelo bem estar de seus filhos, e quando papai, aos dois anos de idade, pegou difteria e foi dado como caso perdido pelos médicos, vovó fez a promessa de subir de joelhos os 365 degraus numa colina em cujo topo ficava uma igreja onde ela levaria velas, se a Virgem salvasse seu filho. Ao cumprir sua promessa, a mãe feroz quase teve que amputar suas pernas, mas papai foi salvo, contrariamente ao prognóstico médico. (Não devemos esquecer que naquela época, ao menos no Brasil, não havia antibiótico).
Embora eu eventualmente percebi que ele nunca escondeu da família que era um Don Juan, cujo instinto sexual não era contido pelo casamento, nenhum dos seus casos tanto ameaçava mamãe, como o amor que ele tinha por sua própria mãe. Além do prazer inebriante com que esta o amamentou até os primeiros anos, além das dolorosas e destrutivas promessas religiosas que ela veio a pagar duas vezes para salva-lo, aquela mãe ferozmente visceral deu sem querer a seus filhos então adolescentes, o prazer adicional de assisti-la curtir sexo com vovô, quando eles a espionaram pelo buraco da fechadura do quarto do casal. Que descoberta! Para o filho maravilhado, a mistura de adorar a mãe santa e reconhecer a sua ativa natureza sexual era um tour de force que só ela podia inspirar; somente a sua mãe sobre-humana podia estar acima de tudo que todas as outras mulheres deixavam a desejar, juntando a santidade da maternidade `a lascívia da carne. Ela era ímpar!
Seja la a visão microscópica que papai viu do encontro sexual de seus pais tornou-se a excessão de todas as teorias que ele tirava do comportamento de certos animais, e usava para justificar suas infidelidades: "O prazer das mulheres esta na maternidade, e dos homens in sexo. Enquanto uma vaca leva muitos meses de gravidez e lactação, o touro que a fecundou cobrirá muitas outras vacas. Se uma mulher gosta de sexo, ela é como um homem, e não pode dar uma boa mãe. Com excessão da minha mãe! Ela é a melhor mãe, e a melhor mulher!" Cansei-me de ouvi-lo dizer.
Diante do auto punitivo tipo de existência de sua sogra, por causa das roupas velhas e rasgadas que usava, do seu orgulho em falar que nunca fora a um cabelereiro em sua vida, da aparência surrada que ela mantinha, `a maneira dos martires medievais que se faziam sofrer fisicamente para negar a carne, mamãe não via nela qualquer sombra de sensualidade, e deduzia que papai sofria de um complexo de Édipo agudo. Mesmo assim, vovó continuou a ser sua maior ameaça e enigma.
A matriarca amamentara seus filhos durante anos, e como a diferença de idade entre eles não era grande, ela `as vezes dava o peito simultaneamente a uma criancinha de um lado e um bebê de outro. Pra não falar dos cachorrinhos que ela também amamentou, das ninhadas de alguns dos muitos cachorros que ela sempre gostou de ter.
Quando eu era criança, os seios de vovó lhe batiam pela cintura, eu achava que eles eram os maiores seios do mundo, e ficava fascinada com os santinhos aninhados entre eles, como se toda a hierarquia celeste estivesse presente no encontro daquelas medalhas douradas e santas, com o peito querido.
A "santidade" oficial de vovó foi declarada por seu filho mais velho, um "dandy" cujas visitas diárias `a sua mãe eram pra mim um prazer assistir. Ele não tinha a menor vergonha de ser carinhoso com sua velha mãe, beijando-lhe o rosto repetidamente e sussurrando no ouvido dela os doces apelidos que lhe inventava. Ele se casou oito vezes, mas sempre que ficava doente chamava vovó pra perto de si, dizendo a fosse quem fosse sua esposa, que somente a mãe dele sabia como cuidar dele.
A liberdade do seu afeto era tal, que dando-se o direito de um papa, ele batizou sua fazenda Santa Aminta. Quando um de seus amigos lhe disse que nunca ouvira uma santa com esse nome, meu tio, com a inocência de sua convicção, respondeu: Ela é a minha mãe!
Thursday, October 31, 2019
Papai e Mamãe
Os dois pensavam demais, questionavam tudo, e concluíam um trilhão de teorias tão opostas entre si quanto as realidades em que eles viviam. Quando papai soube que eu já tinha tido cinquenta aulas de motorista e estava longe de me sentir preparada para fazer o exame, disse que eu procurasse um médico que examinasse minha cabeça. Por causa do meu ritmo lento, excessivamente introspectivo, mamãe, por outro lado, achava que eu vivia na dimensão contemplativa, e chegava ao ponto de ver em mim uma re incarnação do Egito antigo. Muitas vezes, com a sua firme convicção de que qualquer um, tendo oportunidade, pode fazer as coisas direito, ela ajudou pessoas de que nada se esperava, com bons resultados. Naquela vez em que a encontrei no meio da pequena rua em que morávamos, ouvindo as queixas de um cara pobremente vestido, que enxugava as lagrimas, dizendo que mesmo estando ele perto de ser pai, ninguém queria lhe dar emprego, só porque tinha ficha na policia - devido claro, a um mal-entendido- ela acabava de contratá-lo para que continuasse minhas aulas de dirigir. Assim, tanto eu, que ja estava envergonhada de aparecer na auto-escola, quanto ele, ganhávamos nova chance. Depois de me dar um mês de lições diárias, numa escola de direção bem recomendada no Rio, o instrutor que me fora designado delicadamente me mandou desistir. Numa manhã de calor e mormaço, enquanto ele catava as balizas que derrubei, eu olhava para o céu acinzentado, e pensando em tudo que não fosse os minutos que ainda teria pela frente até poder voltar pra casa, surpreendi-me, quando ouvi, do lado de fora da janela do carro, "Estrelinha..." "...Como?", perguntei, sem entender nada. "Você é uma estrelinha" continuou o instrutor" não é deste mundo... Melhor desistir de dirigir..."
Depois disso passei a ter sonhos repetidos de extrema liberdade, como quando se sonha que se está voando, só que ao invés de tal proeza, eu simplesmente sonhava dirigir sozinha!
Certo ou não no seu "diagnóstico", o instrutor pelo menos me comparou a um corpo celeste, como se entre a posição médica de papai, e a espiritual de mamãe, ele ficasse no meio.
A escola para que trabalhava também me aconselhou desistir, acho que ja estavam sem graça de me manter na sua lista, sem nunca conseguir marcar data pro exame.
Devo aqui informar que papai, tendo uma vez que tomar conta de mim quando eu era pouco maior que um bebe, chegou a sua inabalável conclusão de que eu era diferente, pra não dizer, estranha. Concluiu, daquela sessão de babá, que eu não tinha instinto de sobrevivência. Pra ele, tudo vinha de causas físicas, enquanto pra mamãe, tudo respondia a motivos transcendentais. Em relação a qualquer deficiência que eu tivesse, eu obviamente preferia acreditar nas explicações dela, mas mesmo assim, ja estava morrendo de vergonha. Na verdade, ele havia concluído que eu era diferente, desde a vez em que teve que tomar conta de mim no seu estúdio, quando eu tinha pouco mais de dois anos. Mamãe havia saído por alguns momentos, e pedido a ele que não tirasse os olhos de mim. Sem desviar o foco do bebe que eu era, na louca e repetida aventura de subir os degraus de uma escada de pedreiro, que, com meu peso, levemente se desprendia da parede em que estava encostada, a caminho de cair sobre mim no chão, ele prontamente me tirou do degrau médio que eu conseguira atingir, e disse: " Não sobe nessa escada que ela cai em cima de você"! Mas eu subi novamente, me empoleirei na escada que já se despregava da parede, e meu pai me tirou a tempo, "Não disse? Ia cair em cima de você e no chão, será que vc não vê?!"
Na terceira vez em que repeti a mesma "façanha", papai ficou assistindo. Adorava assistir, e avaliar o comportamento humano. Quando viu a escada desabar, achou que só assim eu iria aprender, e entre as minhas lágrimas e a bronca que levou de mamāe por causa das manchas rochas no meu corpo, explicou a ela, que mal acabava de chegar, "... Essa menina não tem instinto de sobrevivência!...", "Como pode você concluir isso de uma criancinha? Você que é louco, pensa que pode ser cientista de laboratório enquanto toma conta da criança!"
Mas papai nunca deserdava os diagnósticos que fazia, e diante de muitas coisas em minha vida, como estudar filosofia, repetiu que a escolha se devia ao fato de eu não ter instinto de sobrevivência.
De volta ao suspeito que mamãe contratou para meu treino extensivo no volante, o cara usava uma camisa verde luminoso, acentuando o inchaço branco prestes a explodir das varias espinhas do seu rosto, mas ele se dava ares de todo entendido em tudo e de dono da rua. Pelo menos dentro do fusca velho em que dirigíamos eu tinha que o vê-lo como superior a mim, afinal eu dependia dele. A porta do lado esquerdo do carro abria sozinha em cada curva pra direita, e eu conseguia segura-la ao fazer a curva. Enquanto isso, o instrutor dava socos irritados na sua própria porta, ja que o carro não tinha buzina, quando ele via e gritava para as pessoas idosas atravessando alguma rua do caminho a seguir " Será que isso aqui é a passarela da velhice???" E tocava a socar a porta.
Depois de mais dois anos, em que fui à faculdade que cursava com aquele cara do lado me dizendo quando acelerar, quando virar aqui ou ali, quais os espaços em que o carro devia entrar, e nos quais eu nunca pensei que caberia, mamãe percebeu que o cara, com a desculpa de levar o veículo pra concertar, desviava dinheiro dela com frequência. E eu, ainda longe de poder dirigir. Ele falhou sua nova chance, e eu fui aconselhada a insistir. Mamãe contratou outro renegado. Este, depois de seis meses, falou que eu nunca iria dirigir. Afora minha nulidade em me orientar, o carro, em que, quando nele, fica cheio dos meus pensamentos, horizontes e divagaçōes, me parece até hoje, depois que dirijo há trinta anos, muito grande para tudo lá fora, que por sua vez me aparece diminuído, abstraído mesmo,
à volta do veículo.
Mas eu consegui dirigir, mesmo tendo comprado a carteira. Consegui porque quis morar na frente do mar, numa praia que na época era num bairro deserto. Mas sempre foi a minha praia preferida. Como sempre, dei um pulo maior que a perna, e tive que aterrissar com muito esforço.
Wednesday, October 30, 2019
Ayahuasca: Ele ou Ela?
Acho interessante a tendencia a atribuir gêneros (masculino ou feminino) a entidades, como o mar, os rios, o céu, e, revertendo ao título, o/a Ayahuasca. Não estou criticando essa tendencia, porque eu mesma atribuo gêneros, a partir da minha língua original. Mar, em português, é o mar, ao passo que em francês, é la mer. Embora a língua inglesa neutralize, com o artigo the, grande parte da divisão entre gêneros, em contextos verbais mais íntimos, se vê obrigada a atribuir um she, ou um he, ao que em principio seria somente um it. Assim, no filme Disney Nature, sobre o mar este virou um she, que eu não conseguia aceitar, não só por causa da nossa língua portuguesa, mas porque vejo naquela força imensa de água indomada, o poder exclusivo de invasão viril. Em fotografias que se pretendem sensuais, por exemplo, ja vi mulheres sentadas de pernas abertas, rente `as aguas salgadas, enquanto a espuma de alguma onda furiosa parece novamente explodir de encontro ao sexo delas. Vejo, na sensualidade desse encontro, a completude da união do poder masculino de invasão, com a aceitação da entrega feminina. Se eu olhasse o mar como outra ela, aquela sensualidade teria um tom masturbatório, e ao invés de expressar completude, expressaria, talvez, narcisismo.
Em relação a automóveis, que pra nós brasileiros, são eles, viram elas para os americanos, quando estes, orgulhosos do seu veiculo, tentam personaliza-lo, “she goes really fast…”, ja ouvi um cara dizer, dando tapinhas na “bunda” do porsch novo que havia comprado, como se ele fosse sua nova namorada.
Mesmo sabendo de varias justificações psicológicas para tal sublimação, fico me perguntando como que um veículo, cujo poder na velocidade é de “furar” o ar ao se propelir pra dentro das extensões que transpõe, vem a ser tratado como ela. O mesmo acho no tocante a navios, barcos, aviões, trens, e foguetes espaciais, antes mesmo de saber como são tratados, na lingua X ou Y.
Sei que tenho certa relutância em atribuir o gênero feminino ao que pode ser neutro, por este permitir as pessoas ficarem “fofas” e piegas, em relação `a entidade em questão. Mãe natureza, por exemplo, me soa super piegas. Na sua lei do mais forte, no constante processo natural do bicho maior, ou mais poderoso, comer o menor, a natureza não maternaliza ninguém, acho que, ao contrario, sua mensagem, de extrema dureza, vai mais na linha agressiva e guerreira de Nietzsche, “o que não mata, torna mais forte”. Posso olhar a natureza como ela, mas não como mãe. A artificialidade sim, pode ser protetora e envolvente, afora o fato de ter primeiramente surgido para tornar a sobrevivência mais fácil, para amaciar a natureza. Se pegou a rédea nos dentes, e em muitos aspectos virou destruição, ja se trata de uma degeneração, e pertence a outro assunto.
Quando comecei a participar dos rituais de Ayahuasca com os índios Huni-Khuin, não pensava duas vezes ao me referir ao cha como o Ayahuasca, antes mesmo de saber que na mitologia desses indios, ele é tido como o seu primeiro pagé, aquele que, na estoria que contam, foi morar com a Jiboia no fundo do lago, e tendo retornado doente para o seu povo, instruiu a todos que quando morresse eles misturassem as plantas que nasceriam do lado de sua rede, num chá que lhes traria todo o conhecimento que ele havia aprendido com a Jiboia, no fundo do lago. Quando bebemos o chá, disse-me Bane, estamos bebendo aquele primeiro pajé.
fEntretanto, através dos anos, tenho ouvido Ayahuasca ser chamado/a de mamacita, (mamãezinha), em canções ocidentais açucaradas, ou de Grandmother (avó) e por aí afora. Explicam que o feminino é o que cria, como a natureza, e Ayahuasca é a voz da natureza, a voz da floresta. Tudo bem, mas essa criação é física e imediata, do mesmo jeito que nós somos também fisicos e nascidos do imediatismo dos processos biológicos.
Mas o que dizer sobre a criação de ideias e de tudo que nasce do pensamento abstrato? Homens não parem filhos, mas através da historia, vemos que existiu maior numero de grandes escritores do que escritoras, escultores do que escultoras, filósofos do que filosofas, músicos do que músicas, empreendedores inovadores do que empreendedoras, maior quantidade de descobertas cientificas feitas por homens do que por mulheres, e mesmo que isso tenha sido em parte por causa da cultura sempre machista, os homens realmente se provaram criadores. Mas, certamente por causa da situação do planeta, tudo que se fala é o “sagrado feminino”.
Mais do que simplesmente forte, o poder do Ayahuasca, longe de ser como o de uma “mamãezinha”, é violento e destruidor de todos os nossos engodos e defesas mentais. É o poder que nos bota, impiedosamente, cara a cara com a dor de que mais nos escondemos.
Na sua autenticidade orgânica, Ayahuasca é sim a voz da floresta, das plantas, dos animais. Na sua dimensão dionisíaca, de nos reduzir por instantes ao tumulto de nossas vísceras, o chá tem mesmo a fisicalidade da natureza, da fonte feminina de criação. Mas na sua dimensão cósmica, que destroi os limites das nossas noções de medida, de comparações entre alto e baixo, grande e pequeno, grotesco e sublime, através da magnitude que da aos nossos cinco sentidos, Ayahuasca elimina a relatividade com que percebemos o “nosso” mundo, e nos leva ao espírito, `a criação imaterial.
Voz de Deus e voz da terra, Ayahuasca não é simplesmente “mamãezinha”, tampouco, “vovó”, mas o Ele terrível e a Ela visceral; o pai, a mãe, o filho, e o espirito santo.
Parecendo de acordo com essa sua verdade, não ha, entre os seres humanos, nada mais bonito do que a delicadeza feminina no homem viril, e a firmeza masculina na mulher delicada.
Wednesday, October 30, 2019
Na Floresta com Benki e Proust
Photo by Aniwa Gathering 2018
Quando primeiramente pensei em visitar os índios Huni Kuin na floresta, fui obrigada a considerar todos os possíveis e impossíveis riscos que correríamos, contagiada pela aflição do meu marido, que, americano, odeia mosquitos, não pode viver sem ar refrigerado no verão, e não dispensa a proteção do artifício, a certeza de regras, leis, e tudo que programa o comportamento humano. Sabendo que eu levaria nossos dois filhos, me chamou de louca e irresponsável. Naquela época, Olivia, que sempre foi complicada para comer e super sensível a problemas digestivos, só tinha 13 anos, e era magrinha além da conta. Sem saber se seria fácil levar no barco que vai até a aldeia, os muitos litros de água mineral que precisaríamos por alguns dias, comecei a achar que meu marido tinha razão, e pouco a pouco pensei ter desistido pra sempre de ir `a floresta. Afinal, se eu própria nunca fui daquelas que gostam de acampar, e aguentam, com espírito de aventura, as privaçōes de coisas elementares com que geralmente contamos, pareceu-me inconcebível submeter minha delicada filha à tal situação.
Mas vindo a encontrar Benki no Rio, alguns anos depois, fiquei admirada com a seriedade e o foco que ele transmite, e jurei a mim mesma arranjar um jeito de meus dois filhos o conhecerem. Sabia, entretanto, que ele quase nunca vai ao Rio, e praticamente só viaja para o estrangeiro. Um ano depois, decidi ir `a floresta com Chris, que ja tinha 27 anos, e Olivia, que ja alcançara os vinte, mesmo sem saber como contactar Benki e obter certeza de que ele estaria disponível. Só poderia alcança-lo por Facebook, e assediado que ele é, não respondia minhas mensagens. Quando resolvi desistir e avisar Olivia pelo FB, vi que não só ela estava online, como Benki. Tentei novamente contacta-lo, e ele consentiu que fossemos, mas avisou que dali a alguns dias, estaria ocupado com um time da TV Globo, que iria la na sua aldeia filmar. Eu e meus filhos estávamos no Brasil de visita, mas o aeroporto em Rio Branco, segunda etapa da viagem, estava fechado devido a um incêndio, e não podíamos comprar passagens pra lá. Como
Apiwtxa, a aldeia Ashaninka, fica no limite entre Brasil e Peru, imaginei que voltando aos Estados Unidos poderíamos sair direto de Los Angeles para Lima, e de Lima, prosseguir. Meu raciocínio foi simplista, eu estava longe de imaginar que era um milhão de vêzes mais fácil alcançar
Apiwtxa sem sair do Brasil. Estávamos pensando chegar dois dias antes do pessoal da TV Globo, para que Benki tivesse algum tempo pra nós. Quando o conheci, ele deu sessões individuais de reza durante as quais falou para a pessoa em questão muitas verdades sobre ela, e eu queria que pudesse fazer isso com Chris e Olivia.
Determinada além de mim mesma e da geografia do mundo, pedi a Chris, que já tinha ido sozinho à floresta visitar aldeias Huni-Khuin e tinha amigos americanos que se aventuraram por aldeias indígenas no Peru, para descobrir o caminho, organizar todas as conexões e meios de transporte que deveríamos pegar para chegar à aldeia Ashaninka. Chris passou dois dias no computador, pois, obviamente, nenhuma agência de viagem programa tal peregrinação. Eu não tinha idéia de quantas conexões teríamos que fazer, tampouco da extensão de água que deveríamos transpor de canoa a motor, mas estava cada vez mais firme no meu propósito: Meus filhos místicos e yogis tinham que encontrar Benki, nem que leva-los até ele fosse a última coisa que eu fizesse na vida. Para dar uma ideia da nossa jornada, que durou doze dias, estivemos em trânsito a maior parte do tempo, tendo que parar em nove pequenas cidades e vilarejos, para finalmente poder passar dois dias em
Apiwtxa.De Lima fomos pra Pucalpa, onde pegamos um avião de missionários que nos deixou em
Breu, aldeia indígena no Peru, de onde passamos `a canoa rumo a Marechal Thaumaturgo, ja no Brazil, e de lá prosseguir mais cinco horas rio acima, para Apiwtxa. Não consigo esquecer o momento em que vi a estreita canoa que nos levaria, atracada num nível mais baixo do que o chão de beira do rio, com nossos pertences empilhados sob coberta de plástico, entre dois dos pequenos bancos em que nos sentaríamos. " É isso o barco?", perguntei a Chris, "...Você acha que seria um transatlântico?", ele brincou, enquanto me ajudava a entrar na canoa com minha mochila nas costas, para que eu não perdesse o equilíbrio. "Eu ja sabia que não teria banheiro no barco, mas mesmo assim esperava encontrar um bar ...", confessei, chocada com a minha própria alienação. Ainda alienada, achava que Marechal Thaumaturgo seria nossa próxima parada, e assim que nos sentamos na canoa, perguntei ao barqueiro, o qual dirige o veículo de pé na pequena popa, quantas horas levaria até lá. Ele parecia bem velho, e não dava pra perceber se seus olhos estavam quase fechados por serem puxados, ou por estarem contra o sol, ou porque sua visão ja era fraca. O tom hesitante com que respondeu, " Três horas...", não me impediu acreditar que ainda em plena luz do dia, chegaríamos `a reta final.
Chris tinha comprado um garda-chuva para Olivia e outro pra mim, para que conseguíssemos viajar na sombra, pois o sol lá bate super forte, e me disse que se ficássemos cansadas naquele banco tipo tábua, poderíamos nos encostar na nossa própria tralha, que formava um monte irregular bem atrás de onde me sentei com Olivia.
Partimos. A canoa ia devagar, e o rio, naquela época do ano, não só estava baixo, como cheio de troncos de arvores, galhos grossos e pontudos se espichando da superfície, e com os quais, se nos chocássemos, fariam a canoa virar sobre nós com motor e tudo, podendo ate mesmo nos matar, vim eventualmente saber. Enquanto a canoa prosseguia, não podíamos deixar qualquer parte do nosso braço ou perna bater contra eles, para evitar o risco de seriamente se machucar. Mas na companhia de meus dois filhos, entre céu e rio, rodeada por água e floresta, me senti deitada em berço esplendido, mais enraizada e forte do que em qualquer dos outros lugares que conheci. Quando Chris alertava, em inglês, meio que imitando as repetitivas gravações designadas `a segurança dos passageiros nos brinquedos dos parques de diversão, "mantenham mãos e pés todo o tempo dentro do veículo" (keep hands and feet inside the vehicle at all times) pensei que ele estava brincando, e ri do excesso de prevenção dos americanos contra todas as possibilidade de perigo.
Repartindo o encosto formado por nossa bagagem com Olivia, ia eu relaxada, deixando parte de minha perna dobrada descansar na borda da canoa, nem mesmo ligando que meu joelho excedesse os limites desta. Não havia, em mim, lugar pra noção de perigo.
Questionando o porque de meu bem-estar, ocorreu-me que eu e meus filhos não temos em comum o que se pode chamar lar original, "home". Nasci no Rio, e lá tive Chris, morando com ele quatro anos diante de um mar de que nunca pensei um dia me separar. Mas, casando com Steve, mudamos para os Estados Unidos, onde, contando Boulder, vivemos em quatro estados. Passamos alguns anos em cada um deles, e Chris encontrou seu lar em todos esses lugares. Durante algum tempo, esqueceu-se da língua materna (meu marido não fala português) e seu primeiro idioma passou a ser o inglês. Ja tinha sete anos quando eu tive Olivia, no Midwest americano. Diferente do irmão, que se familiarizou com todas as cidades em que aterrissamos, ela, americana de nascença, amava o Brasil acima de tudo. Fez o que podia, para que eu e ela nos mudássemos pra la, até que, vindo finalmente parar em Boulder, sossegou. Mas, de vez em quando, ainda diz que quer ir morar na floresta (nem mais no Rio...)
Colorado é o quarto estado em que moramos, e nossa casa atual, a décima. Com tantos lares, e idioma, deixados pra trás, e já tendo Chris ido morar na California há seis anos, é mesmo difícil apontar um lugar em comum com eles como nosso lar original. Mas na floresta das florestas, parece que retornamos às raizes das raizes, assim como, sob Ayahuasca, nos encontramos numa realidade eterna, cujas raízes estão dentro de nós. Sob as árvores, e em nosso coração, verdade física e do espírito, esse princípio imemorial se revelava e me embalava rio acima, como se tudo o mais tivesse deixado de existir.
Quando meu joelho se chocou com um galho de árvore que o barqueiro certamente não viu, Chris levou tal susto que só mesmo para poupa-lo me restringi aos estreitos limites da canoa. Nosso barqueiro não só tinha vista deficiente, como um motor extremamente lento. Várias canoas, indo e vindo, eram bem mais rápidas do que a nossa, mas mesmo assim, entre as paradas para mergulhar e nosso lento avançar, o percurso era pra mim renovador ao mesmo tempo que tão familiar quanto alheio ao resto do mundo, e ainda assim parecendo conter a verdade de todo o planeta. Depois de quatro horas passadas, perguntei novamente ao barqueiro quanto tempo ainda levaria para que chegássemos a Marechal Thaumaturgo, " Três horas..." ele respondeu, com a mesma atitude vaga. Olhei para Chris, "voce acha que ele me entende?", "Sei lá..." Chris respondeu, sem querer revelar que antes de Thaumaturgo, bem antes aliás, ainda tínhamos que chegar ao Breu, "... Mas como, se saimos do Breu?"(aquela altura, pensei que estava sonhando) " É outro Breu, mãe, o Breu brasileiro", "... Tudo aqui se chama Breu?..", Chris riu, "E quanto tempo vai levar do Breu brasileiro, pra Thaumaturgo?" " Sei lá mãe, e o dono do barco também não deve saber..." Deus meu, será que não podíamos ter pego um barqueiro melhor? Realmente, aquele homem que nos conduzia não parecia entender ou saber nada.
Peguei no sono algumas vezes, e fui acordada abruptamente, sempre que a canoa encalhava nas partes mais rasas do rio, e toda a água acumulada no seu chão jorrava lá de trás, passando sobre meus pés como uma enchente, e enquanto Chris entrava no rio para empurrar o veículo, eu lembrava onde me encontrava, sentindo grande alivio ao ver o verde das arvores acima de mim. Mas o dia começou a cair, e nem sinal de qualquer lugar onde se pudesse parar. Já tinha uma estrela no céu, quando o barqueiro informou que estávamos cruzando o limite entre Peru e Brasil. Chris me disse ser inviável viajar `a noite naquelas canoas, e o tal Breu brasileiro começava a aparecer. O barranco do rio estava altíssimo, mas havia uns três rapazes perto da agua, que nos olharam como se fossemos apariçōes. Um deles chegou perto e, ajudando a puxar a canoa fora da água, perguntou de onde vínhamos. Meus dois filhos são tipicamente "gringos", enquanto que eu não faço o tipo característico de brasileira, ou de nenhuma nacionalidade. Pra todos os efeitos, éramos todos estrangeiros, com excessão do barqueiro: o que levaria estrangeiros aquele vilarejo? "Estamos de passagem, para Apiwtxa, onde vamos encontrar o Benki", Chris explicou, "Benki é meu amigo.." disse o rapaz, " Tem alguma pousada aqui?" "Sim, vocês sobem o barranco, e logo ali
à direita, bem do lado da igreja, vocês encontram onde dormir, e podem vir comer na minha casa", explicou amavelmente, o rapaz.
O "Logo ali `a direita" encheu de água a minha boca, fazendo-me imaginar cervejas geladas e até, quem sabe, ar refrigerado à nossa espera. Escalamos o barranco carregando nossa tralha, e, caminhando para a direita, avistamos a pequena igreja, " A pousada é isso...", disse Chris, ao nos defrontarmos com um espaço aberto e ligeiramente elevado, sob um teto em que se podia pendurar nossas redes. Tchau cervejas, mas amanhã encontraremos Benki, pensei, dispondo nossas coisas
`a volta das redes que o barqueiro e Chris penduravam.
Tipicamente Brasil, a comida que o rapaz nos ofereceu era pouca, mas o coração dele era grande, e isso que realmente conta. Agradecemos o mais que pudemos, e enquanto Chris conversava com ele e respondia suas inúmeras perguntas, eu voltei para a "pousada", e qual a minha surpresa! Ja noite fechada, a voz bombástica de um evangelista catequizando os inocentes dentro da igreja, podia se ouvir como se ele estivesse na rede ao lado. Porque Jesus disse isso, gritava sem a menor reverencia, Jesus proibiu aquilo, Jesus é o nosso Senhor, ele pode afastar o mal, mas ele quer que se tenha fé e que se ajude a sua igreja, prosseguia, impunemente autoritário, como se falasse de algum medíocre com quem acabava de tomar uma cachaça. Fantasiei entrar na igreja e lhe dizer que deixasse aquela gente em paz, pois eles na certa estavam mais perto do filho de Deus do que alguém que, falando do Senhor com intimidade inadequada e mentirosa, não expressava sombra de respeito.
Nossa! Ja era mais tarde que nove horas, e ainda tinha gente entrando na igreja, como que eu poderia dormir, e se não dormisse, como aguentar o som daquela voz dando show de pretensão e sensacionalismo? Pensei em Benki, que iriamos encontrar no dia seguinte, e que, sem nunca precisar pronunciar o nome de nosso senhor, me transmitiu mais fé do que qualquer pastor poderia transmitir. Então, me lembrei. Meu iPhone, com as gravações da obra prima de Proust me salvaria. Enfiei-me na rede que me fôra designada, fechei o mosquiteiro aderente a ela, enfiei em cada orelha os fones de ouvido, e adeus pastor, adeus catequização, adeus tudo que destoa da espiritualidade autentica de Proust.
A passagem que me veio da Recherche foi a descrição da duquesa, por quem Marcel estava apaixonado. Vizinho dela, ele podia ver de sua janela, ela se aprontar diante do espelho, "no esquecimento mitológico de sua grandeza nativa, ela olhava se seu véu estava bem colocado, endireitava suas mangas, ajustava seu casaco, como o cisne divino faz todos os movimentos de sua espécie animal, mantendo seus olhos pintados dos dois lados de seu bico sem nem mesmo olhar, e se joga de repente num botão ou num guarda-chuva, como cisne, sem se lembrar ser um deus."
Proust reconhece que sua imaginação em busca da perfeição vê dimensão transcendente no mais carnal de seus desejos, e conclui que na busca do amor, nós ligamos a pessoa amada a divindades, e assim povoamos nosso mundo com elas. Proust na sua capacidade de adoração se expressa de maneira tão linda, que suas palavras, com a validez da beleza, transmitem mais verdade do que a realidade factual, quer dizer, revelam as impressōes digitais de Deus na pessoa que ele amava. Palavras muito mais convincentes, e na sua intensidade poética, muito mais transcendentes do que as do pastor ao lado, transmitindo melhor do que qualquer padre a presença da divindade.
Jesus constantemente mencionou ser filho do homem, na generosidade de repartir conosco a sua própria proximidade de Deus. "A carne é fraca", mas, na sua possibilidade de entrega ao divino ela abriga a força do homem.
Consegui dormir, e ja tendo passado a fronteira sem problema, sabia que no dia seguinte veríamos Benki. Não foi bem assim, pois só conseguimos chegar a Marechal Thaumaturgo `a noite, depois de quase bater- não tivesse Christophe os segurado e com as pernas impelido a canoa na direção contrária- nos troncos de árvore que o barqueiro não viu, e tivemos que pernoitar lá. Arranjamos outro barqueiro na manhã seguinte e conseguimos chegar a Apiwtxa sob o terrível sol das duas horas. Depois de subir o barranco e caminhar grande parte da aldeia, encontramos Benki ao ar livre, em conselho com outros índios. Já não mais esperando nossa visita, quando soube do absurdo de termos vindo do Peru e passado dezesseis horas numa canoa, ele deu uma grande gargalhada de humor e boas vindas, como se tivéssemos conseguido o impossível.
Não se costuma ir `a Apiwtxa pelo Peru, a não ser alguém que prefere seguir ideias do que mapas...Alguém que tem experiencias espirituais mais profundas através do texto de Proust do que do papo de qualquer pajé, ou da ida a qualquer lugar. Assim, depois de um ritual de Ayahuasca sob céu estrelado, consegui finalmente adormecer dentro de minha rede, entre todas que estavam penduradas do lado de fora da casa de Benki, abafando os ruídos estranhos de animais híbridos e semi-domésticos, com a gravação do texto de Proust nos ouvidos e sua constante, crescente, purificante, instigante, ímpar, e apaziguadora revelação do espírito! Sem tomar Ayahuasca, Proust, que dá de si até a última gota em qualquer situação e assunto que descreva, alcança os extremos insuperáveis da alma humana, aqueles que, finais, são vizinhos da morte. Por encará-la sempre, ele atinge o máximo, ele vive na força!
Tuesday, October 29, 2019
Ayahuasca: O Chamado
Nosso primeiro e inesquecível Pajé, Txana Bane
Sempre quis experimentar um alucinógeno, ao mesmo tempo que tinha o medo mais comum, o de “não voltar” da viagem. Mas não podia deixar essa página passar em branco, principalmente sabendo que Aldous Huxley mencionou, como efeito da mescalina, o alcance de uma visão “sacramental da realidade”. Busca de Deus, e busca de me conhecer melhor se identificavam, numa urgência em comum. Mas depois que li o livro de Sting relatando sua experiencia no Daime, e o quanto sofreu vomitando, antes de poder receber qualquer revelação do sacramento da floresta, como os nativos chamam Ayahuasca, pensei que nunca chegaria perto dele.
Como a maioria das pessoas, odeio vomitar. Talvez pudesse então tentar o peyote… Chris, meu filho, havia me recomendado um livro que fala de todas essas plantas no seu contexto shamanico, e eu, marinheiro de primeira vez, queria estrutura, na companhia de pessoas experientes que saberiam como ajudar quem por acaso ficasse numa "bad trip", ou de algum modo afundasse na loucura. Entretanto, uma vez em que estava no Rio e ouvi, de alguém vinculado ao centro de estudos shamanicos, que haveria um ritual Huni Kuin de Ayahuasca naquele sábado, dali a somente dois dias, surpreendi-me com a certeza instantânea e imediata de que eu seria um dos participantes.
Sem nem tentar justificar, ou compreender porque e como mudei, eu só sabia que nada e ninguém no mundo iria me impedir faze-lo.
Me disseram que os Huni-Kuin são índios que moram na Amazonia, de onde se originou o Ayahuasca, e alguns deles vinham para a cidade conduzir os rituais de acordo com a sua tradição, que chamam de Nixi Pae. Na época, eu só me interessava pela substancia que iria alterar a minha mente, imaginando, com a típica postura mental da civilização, que esta substancia era o que era independentemente de qualquer contexto, e atuava nas pessoas por si própria,`a parte do pajé que interagia com ela. Por isso, eu não tinha ideia da minha sorte em chegar ao Ayahuasca através dos índios, assim como não podia imaginar a importância do pajé conduzir a cerimonia, ou a influencia individual de cada um deles no modo com que age o poder do chá: a força, como eles dizem.
Assim, naquela linda noite de verão em que eu estava de visita no Rio, me encontrei numa sala grande e envidraçada, diante da floresta da Tijuca, entre umas trinta pessoas sentadas em circulo `a volta de um índio bem moço, de bata, e um enorme cocar na cabeça. Fui informada, por um dos guardiões (pessoas treinadas para ajudar aqueles que precisassem) que aquele índio pajé cantaria para chamar a força, logo depois da primeira servida do chá. Mesmo com a convicção que me levara até ali, eu estava morrendo de medo, e não conseguia parar de fazer perguntas aos guardiões. Podia se vomitar em qualquer dos baldes espalhados pela sala, e usar o banheiro do lado se preciso, e para qualquer mal estar excessivo os guardiões saberiam ajudar. Disseram que o Ayahuasca nos mostra quem somos, e esse encontro consigo mesmo e também com o mais alem, dentro de si mesmo, é um “trabalho” e não uma fuga ou diversão. Por isso era bom nos focar nas interrogações que tivéssemos sobre caminhos a tomar em nossa vida, ou sobre nós mesmos…
Tentei apaziguar tanto o medo da rebordosa física, quanto o do mistério da mente, lembrando-me que a instantânea convicção que senti de querer experimentar o chá, depois de ter tido certeza de que nunca chegaria perto dele, só podia ser mesmo um chamado. De fato. Foi maravilhoso. Só vou mencionar dos espíritos, das cores infinitas, e dos ângulos de outras dimensões na eternidade das perspectivas que vi, a aparição do rosto de Cristo, luminoso, com uma gota de sangue de um vermelho vivo e pulsante escorrendo do lado logo abaixo do olho direito, assim como eu em criança pintei no rosto sagrado que desenhei.
Na época em que primeiro tomei Ayahuasca, eu estava justamente voltando a desenhar, depois de muitos anos em que pensava ter parado pra sempre. A aparição de Cristo vinculada ao meu desenho parecia confirmar a identificação que sempre fiz entre o auto-sacrifício da missão artística, que não é nem pragmática nem necessariamente compensada pelo dinheiro, `a missão Cristã, quer dizer, `a realização de uma busca ditada por uma vontade além do próprio artista, ao mesmo tempo que é descoberta da essência deste. O verdadeiro Julgamento Final, como disse Proust.
De modo geral, a melhora que senti com aquela primeira vez foi uma renovação da minha relação com a finitude, e um ressurgir de fé. Ayahuasca elimina a polaridade entre este mundo e o outro, o visível e o invisível, a matéria e o espírito. O tranco inicial que nos dá corresponde `a destruição do reino racional que escraviza nossa percepção do mundo através do julgamento, quer dizer, do que nos permite compreender a realidade por meio da divisão e da oposição entre opostos, daquilo que é através do que não é e vice-versa, mas nunca do que é em si. A compreensão racional da realidade concerne a relativização, para não dizer banalização, de tudo. Mas Ayahuasca nos mostra que a dimensão cósmica, como a libertação da prisão aos padrões de medida que classificam e rotulam o nosso mundo, tudo permea, a despeito de nossos limites mentais de um mundo que compreendemos em função da sobrevivência, da divisão entre o que nos é útil ou não, perigoso ou tranquilo, ruim ou bom.
Por isso, mostra o que é imenso sem ter tamanho, o que é presente na distancia, e o inacessivelmente profundo na mais intensa proximidade, como o Julgamento Final que trouxe ao meu conhecimento uma vez.
Do mesmo modo, o grotesco e o sublime frequentemente se identificam, como na visão que tive da redenção do diabo, num outro ritual.
Na esfera do sagrado em que vive o Ayahuasca, cada coisa, cada entidade, é um ser em si, um absoluto não comparável, um “todo”, vivendo no todo. Um sendo espelho do outro.
Quem sabe, Deus não é o espelhar de si mesmo?
Depois dessa primeira vez, há mais de sete anos, participei de muitos rituais, e vim observando a naturalidade com que os índios convivem com o sagrado e o profano igualmente, talvez porque pra eles, o sobreviver e o estado de oração se identifiquem: os animais que adoram e simbolizam entidades de poder, são também comidos por eles. Sem conhecer a opulência, o desperdício, e o armazenamento de bens para o futuro, seja comida ou dinheiro, eles naturalmente respeitam o que tem no presente; podem ver no seu pão, o “pão nosso de cada dia.”
Vivendo assim, com a dimensão mítica e espiritual enraizada na sua vida fisica, os indios tem estrutura, sem precisar regras. Por isso, ao contrário da regimentação das cerimonias de Ayahuasca conduzidas por civilizados, o ritual indígena tem liberdade e ao mesmo tempo disciplina. Você pode ser você, pode sentar do jeito que quiser, tomar o quanto quiser, e ficar na sua, chorando ou rindo:os índios sabem respeitar a dimensão individualista do Ayahuasca, talvez por justamente não sentirem nisso uma ameaça `a sua consciência de grupo. O civilizado, por outro lado, tem que agrupar `a custa de regras que igualem o comportamento de todos, ou então separar, `a custa de reconhecer conflitos.
Acho que só os índios sabem respeitar naturalmente o individualismo infinito de Ayahuasca, ao mesmo tempo que o seu poder cósmico de tornar consciente a nossa conexão com tudo e com todos, (que muitas vezes aparece visualmente) quer dizer, o fato de que na verdade somos menos que um grão de areia, mas somos, como disse o poeta Manoel Thiago de Mello, "Estrelas de um só momento, mas cujo brilho afeta a ordem do firmamento". Ayahuasca me ensinou que o indivíduo não é parte do todo: ele é com o todo. Me ensinou que nada é parte de nada, pois cada coisa é em si.
Esse socorro não vem fácil. Na passagem da percepção trivial para a esfera sagrada da não relativização, a planta tem que nos “destruir” e recriar, e cada pessoa apanha a surra que merece. Ayahuasca da a cada um a lição que precisa para se tornar digno de ver, no pão que tira da cesta cheia, o “ Pão Nosso de Cada Dia”.
Tuesday, October 29, 2019
Benki
Sempre vou lembrar quando o vi a primeira vez. Sim, ele é o mesmo que inspirou a linda musica Txai, de Milton Nascimento.Eu e Edgar, meu irmão, o esperávamos no aeroporto, e o longo atrazo de seu avião me permitiu relembrar seu rosto, cuja expressão, nas fotos que eu ja tinha visto dele, revelava intensa vida interior. Naturalmente, viria vestido como um de nós; era preciso abstrair seus traços da pintura indígena que os adornava nas fotografias- assim como seu cabelo e a forma de sua cabeça, do chapéu Ashaninka com que aparecia nelas- sem deixar de observar o irritante abre e fecha do portão automático de uma das salas de chegadas aéreas do Santos Dumont, para poder reconhece-lo tão logo aparecesse. O abre e fecha se repetia frenético, mas as pessoas que saiam não tinham nada a ver. Me aproximando, comecei a tentar localiza-lo do outro lado, durante os segundos em que as portas se abriam para cuspir alguém pra fora daquele espaço ansioso, onde passageiros, ainda despojados de sua bagagem, como que roubados de sua identidade, podiam ser vistos desamparados e anônimos, na espera de seus pertences,`a beira de uma esteira. Mas nem sombra de alguém que pudesse ser Benki. Edgar decidiu ir vigiar a outra saída de passageiros, quase que na extremidade oposta do aeroporto, mas dali a alguns momentos, através de uma das brechas entre um homem gordo e a borda das portas que o expeliam, avistei la dentro, um rapaz de camiseta e jeans, vestido como “um de nós”, mas inteiramente diferente de todos. Mais do que esbelto e alto, ele me apareceu etéreo, seu corpo parecendo responder a uma outra dimensão, trazendo-me `a mente as primeiras imagens dos alienígenas, no filme Close Encounters of the Third Kind, quando estes, fora da nave, são silhuetas que se aproximam, ao mesmo tempo que parecem prestes a se desvanecer no ar. A delicadeza de Benki é a sua força.
Ao invés de grudado `a esteira de bagagens, como os outros viajantes, Benki a observava de uma certa distancia, como se um pouco perdido, ou melhor, como se tivesse todo o tempo do mundo. Mais tarde, ja na casa de Edgar, constatei que, mesmo na urgência em que vive, Benki tem todo o tempo do mundo, pois que responde a uma causa que o transcende. Nos momentos em que pudemos te-lo conosco e nossos amigos próximos, entre os milhares de chamados de toda parte, por todo tipo de pessoas que o seguem, fiquei realmente impressionada. Benki é pajé, e líder do povo Ashaninka que mora na fronteira do Brasil com o Peru. Esteve com cada um de nos em particular, e, clarividente, disse, de imediato, qual era o principal problema de cada um, rezou-nos individualmente, soprando fumaça de seu cachimbo em nossa cabeça, aspirando de nosso peito, para logo cuspir for a, o que via de energia ruim, enquanto entoava palavras em sua língua. Não é bastante relatar o alivio diferente que senti, com sua pajelança. Isso poderia fazer pensar em auto-sugestão, assim como acontece com os cobaias que tomam placebos e alcançam resultados positivos, do que seria, supostamente, remédios novos . Basta dizer que, alem de qualquer pajelança, ou do que Benki nos contou de si mesmo, o que na verdade mais me impressionou, foi a sua presença. Ver, para crer, ou talvez, crer, para poder ver. Fica a critério de cada um.
Benki é famoso, não só por abrir caminhos para as pessoas, ver dentro delas, muitas vezes curando-as na origem, sempre ignorada pelos medicos, das doenças que apresentam, mas pela sublime causa de salvar a floresta e o meio ambiente, ja tendo levado sua mensagem a vários países, em encontros com lideres de diferentes nacionalidades, e mobilizado muita gente que a principio era indiferente. No reforestamento que faz com o grupo de rapazes que lidera, ja plantou dois milhōes de árvores. Diz ser a re- incarnação de seu avô, quem lhe deu a causa de salvar seu povo, com sua cultura tradicional, e o respeito pela biodiversidade. Alternando a realidade de fatos, com a verdade de sua herança mítica, tudo que ele diz é fascinante, mas o que torna impossível não acreditar nele é a intensidade de seu ser. Em todos os momentos que estive `a sua volta, pude senti-lo integralmente presente, ao mesmo tempo que arrebatado. Unindo esses dois extremos, Benki é incrivelmente humilde, ao mesmo tempo que consciente do seu valor. Transmite o foco inabalável da coragem incondicional, como se ele fosse uma oferta, por assim dizer, ou estivesse constantemente `a beira do sacrifício. Me fez pensar no amor de Jesus, pelo Pai. Pensei também na paixão, como dor e renascer. A fé que Benki transmite vem da comunicação direta com a sua alma, sendo ele despojado de todas as camadas de defesa, atras das quais nos escondemos. Essa nudez é integridade, a pureza de não se guardar contra nada no futuro, assim como não se agarrar a nada do passado. Coragem é o infinito de presença: Sincronia com o destino.
Tuesday, October 29, 2019
A Iminencia da Vida
Um dia, sonhei com uma estrela boiando no azul aguado do anoitecer. Única, aquela deslumbrante esfera de luz transformava toda a extensão celeste que lhe rodeava em sua exclusiva moldura. Primeira a marcar o céu, ela era a conclusão do nascimento, e o mistério puro entre fim e começo.
Sob um sentimento de respeito quase petrificante, refugiei-me no mundo do conhecido e pensei que aquele corpo celeste era a estrela Dalva.
Venus, eu conheço voce, sei o teu nome, não tenho medo. Sem piscar, a luz radiante do circulo prateado, na sua continuidade ininterrupta, era definitiva. Venus… estrela Dalva, so pode ser. Mesmo que o seu brilho me assuste, voce é familiar; não vai me levar para dimensões desconhecidas, ou me trazer pensamentos estranhos, pensei.
Mas a estrela começou a crescer, até atingir o tamanho de uma bola de bilhar , logo ficando azulada, como a terra vista pelos astronautas a grande distancia. Hipnotizada pela admiração, consegui pouco a pouco discernir, na superfície deserta daquele corpo celeste, rios, florestas, continentes e mares nomeados individualmente, como se Deus lhes houvesse batizado, antes de se tornarem solo de qualquer civilização.
Um novo planeta era anunciado, pronto a ser povoado. Pessoas poderiam pisar naquele corpo celeste, e começar um mundo novo. A disponibilidade da perfeição celeste daquele ser era a iminência da vida, causando-me uma indescritível vontade de chorar. Aquela esfera azulada sem mácula, flutuando no céu trazia a tristeza de ser só, e a alegria de ser única.
“Estrelinha, por que voce quer abandonar a sua completude? Pra que voce quer virar solo cultivado e terra trabalhada, ao invés de continuar sendo pureza intocável? Por que se tornar acessível, abandonando a majestade que vc tem no céu?
Minha estrela estava pronta para virar chão. A iminência da vida, medo do mistério e alegria do milagre, é reverencia diante da inocência, e do imprevisto. É a ambivalência da liberdade, enquanto abandono da perfeição pela posse de um destino.
Aquela esfera sagrada estava pronta para se repartir: a iminência da vida é promessa de integridade e sofrimento de separação. É a concepção e o dar a luz de um bebê .
Estrelas nascem, iluminam, tornam-se unidades isoladas em toda sua plenitude, e também generosidade na luz que repartem. Não é isso, a beleza de um céu estrelado? A novidade sem fim de cada uma, ao mesmo tempo que a ligação de todas no céu?
A iminência da vida. Tremenda fé por parte da criatura, enorme generosidade do criador. Na entrega de ambos, um se separa do outro, com toda a generosidade, liberdade, e nostalgia do desapego divino, e fazendo, da distancia que os distingue, a promessa de retorno e comunhão.
A iminência da vida é o gesto de Deus antes da vida, o desapego e amor da mão divina que Michelangelo pintou no desapego de si ao criar o homem; a inauguração de uma separação que é também reencontro. A mão que trazemos no fundo do coração, do momento em que aceitamos ser a estrela do meu sonho, a oferta de solidez para nossos semelhantes, a semente no ventre de nossa mãe. Um novo brilho no céu.
Tuesday, October 29, 2019
Poema de Amor entre Creador e Criatura
Jesus Christ by Rembrandt
Poema de Amor entre Criatura e Criador
Através de um estudo da oração do Senhor no Aramaico que era sua língua original, descobre-se uma grande afinidade entre sua mensagem com a abordagem oriental, em que o corpo, a dimensão orgânica, tem tanta importância quanto a da mente, e a introspecção aponta para diversos tipos de meditação que nos ensinam a buscar nossa essência dentro de nós mesmos. Nossa essência; nosso eu profundo e verdadeiro: nossa alma. Do mesmo modo, redescobrimos Jesus, numa liberdade poética que, não dogmática ou tampouco discriminante, tudo reconcilia na divindade, expressando sua pureza imaculada através do primitivismo versátil de sua língua original.
A tradução ocidental que temos dessa oração reafirma a divisão entre matéria e espírito, paraíso e terra, coisas do céu e coisas do mundo, como geralmente faz o pensamento puramente racional e julgador, que só consegue entender o "sim", através da sua oposição ao "não", isto é, só consegue "ver" a realidade através de uma constante polaridade de extremos. Desta feita, nos coloca de um lado,] como pecadores carentes , e estabelece do outro lado, a divindade como fonte de ajuda. Claro que ao nos infantilizar dessa maneira, a ocidentalização da prece de Cristo nos transforma em pobres pedintes, empurrando a responsabilidade da nossa transformação espiritual para a piedade do Pai supremo.
Mas a prece original de Jesus, ao invés de simples pedido a uma divindade externa, que existe muito acima de todos os humanos, nos entrelaça com a fonte de criação, ambos agindo juntos, criaturas e criador identificados na reciprocidade do mesmo amor. Claro que a experiencia desse amor corresponde a um estado de Nirvana, `a lembrança de que moramos em Deus, assim como Ele mora em nós. Ja dizia o poeta Kabir, "Todos sabemos que o pingo de água se mistura no oceano, mas poucos sabem que o oceano se mistura no pingo de água."
Antes de mencionar exemplos que ilustram o que disse acima, acho necessário informar que, de acordo com o livro Living the Prayer of Jesus, de Stephanie Rutt, o Cristianismo, diferente de outras religiões, que nascem da transformação de mitos em dogma, nasceu da própria experiencia mística, através de Jesus. No seu maravilhamento, plenitude e temor, essa experiencia mudou a vida dos primeiros cristãos, que se tornaram apóstolos de Cristo. Sem forma verbal, ela só podia ser expressa na exclamação do seu próprio êxtase, "Ahhh...". Considera-se que o desejo de dar forma `a tal revelação levou um dos discípulos a pedir que Jesus lhes ensinasse a rezar, "Senhor, ensinai-nos como rezar" (Mateus 6:9-13 e Lucas 11:1)
As palavras com que Jesus respondeu ao pedido compōem o poema que mantém viva a exclamação de êxtase original, que na tradução para o grego, e depois para outras línguas, foi perdida.No original Aramaico, Jesus começa com ela, na primeira palavra da primeira frase de sua oração: Abwoon d’bwashmaia ( Our Father, who art in heaven).Abwoon, que se pronuncia, Ahh bwoon. Ahhh nos lembra o absoluto, o único. Bwoon evoca o processo contínuo do nascimento pelo som e vibração através da respiração, num processo em que a vida é recriada a cada momento. Enquanto Abwoon se refere `a fonte original de criação, Shmaya, parte da segunda palavra d'bwashmaya, indica a manifestação do absoluto através da respiração, vibração, luz e som. Pode-se dizer que estamos mais intimamente conectados com nosso criador pelo próprio respirar, que é a função mais elementar. A consciência desse respirar nos leva ao laço mais intimo e recíproco com Ele. Só se pode exclamar Ahhh no exalar de um inspirar. Jesus queria que seus discípulos tivessem uma experiencia visceral da divindade a que pertenciam. Queria que eles se sentissem, também, respirados por Deus. Essa interação no processo contínuo de fazer nascer pela respiração lembra o místico cristão do século Xlll, Meister Ekhart, ao dizer, "Somos todos mães de Deus."
Com dimensão tanto orgânica quanto espiritual, acho que não pode haver entrega tão completa quanto sentir-se respirado por Deus.
A oração continua, Nethquadash shmakh, que, traduzido para "Santificado seja o vosso nome", tem também o significado de criar espaço, no caso, para Deus dentro de nós, pois Nethqadash é tambem interpretado como o reservar de espaço a ser preparado no chão, para uma planta especial. Nesse caso se relaciona `a preparação, na nossa própria vida, para nos tornar capazes de ouvir a voz ainda pequena, dentro de nos. A raiz shm in shmakh se refere ao nome divino. Jesus esta lembrando aos discípulos manter o nome de Deus fora de qualquer comportamento inadequado, e "... como a divindade que os chamou, sejam distintos na sua maneira de viver. Pois está escrito, “Santifiquem-se e se consagrem, porque eu sou sagrado" Peter 1, 15-16.
Desde que a conexão com nosso criador ja existe dentro de nós, precisamos cultivar e nutri-la, quer dizer, dirigir nosso foco em sua única direção. Significa desapegar-se de muita coisa que pode impedir o seu crescimento, envolvendo muito do que, até então, podia mesmo ser habitual.
Como sempre pensei, da minha própria interpretação de Jesus, ele estendeu a todos nós, que queremos receber, o seu próprio "parentesco" com o pai, assim como o papel de cada um em relação a Ele.
Desenvolvendo o poema de interação amorosa entre criatura e criador, o que conhecemos como "Venha a nós o vosso reino", correspondendo a Teytey malkuthakh, sugere de Teytey, além da tradução para “venha”, imagens de desejo mútuo relacionados `a câmara nupcial em que serão satisfeitos, dando começo ao nascimento. Malkuthakh, por sua vez, pode ser traduzido como reino, mas também involve, na raiz malkh, o significado aconselhar, tornando o reino de Deus no estado em que a direção do criador é realizada. Teytey Malkuthat pode então, ser interpretado também, como "Alinhe-se com o Criador".Trate-se de se alinhar com Deus, ou de se identificar com a sua presença no amor recíproco da câmara nupcial, no ato de amor que, mais imediato com o criador, é a comunhão. Na comunhão, todos os limites entre os seresque comungam são abolidos, seja através do atavismo canibalista, a que aliás Jesus se remete na última ceia, ao dizer aos discípulos que bebam o seu sangue e comam o seu corpo, seja na vivencia de um amor espiritual.A frase seguinte da oração, traduzida para "Seja Feita a Vossa Vontade", do original, Nehway tzevyanach aykanna, significa " Manifest the Vision, become heaven on earth..."desde que tzevyanach significa vontade como um tipo de desejo, uma cooperação harmoniosa que inclui disciplina. Concerne o desejo do coração, além do estado ideal ou mental. Aikanna é a vontade de consistência e estabilidade que o desejo do coração de Deus seja feito na nossa vida."Assim na terra como no ceu", do original d'bwashmaya, aph bharha, ( b’arh’are ahhhh) quando d'bwashmaya se refere `a luz, vibração e som fazendo o cosmos nascer, enquanto que aph bharha aponta para o suspiro dos humanos, sempre que sentem o apoio da terra sob eles, a frase original pode ser interpretada como "torne-se o paraíso na terra".
" O reino dos céus é aqui... agora ", disse Cristo no Sermão da Montanha, evocando a plenitude do momento presente, que é buscada no Zen Budismo. Continuando, isto é, a desconhecer cisōes entre este mundo, e o do espírito. Tornar-se paraíso na terra significa receber o que ja está em nós, a vontade divina para cada um, e dela agir com alegre paixão.
"O pão nosso de cada dia, nos dai hoje", traduzido de Hawvlan lachma d'sunqanan yaomana, também se interpreta, "Lembre-se da plenitude", desde que Hawlan significa "dar", e lachma traduz-se para "pão", e também "entendimento", enquanto d'sunqanan aponta para recebermos o que precisamos, sem acumulação, e yanomana se refere a "momentos iluminados e diários". Vejo nisso a identificação entre a dádiva de pão e a de entendimento, comida e espírito, quando estamos iluminados.
"And forgive us our debts", from Washboqlan khaubayn (wakhtahayn), washboclan meaning a "return to a original state", enquanto Khaubayin significa "dívidas", na versão de Matteus, e "pecados", na de Lucas. Mas, do Aramaico, pode também querer dizer "falhas", "erros", "ofensas acidentais", "esperanças frustradas"."As we forgive our debtors", de, aykana, daph sknan shbwoqan l'khayyabayn.Perdoar é se libertar. Aykana novamente nos indica que esse libertar-se deve ser consistente e regular. Perdoando, e daí, tornando-se livre, reconhecemos que o que ocorre internamente, acontece externamente de imediato. "E não nos deixe cair em tentação", do original, Wela tahlan l'nesyuna. Considerando-se que Wela tahlan significa não nos deixe entrar, enquanto Nesyuna tanto pode ser traduzido para "tentação", quanto para "esquecimento", ou ainda, "perder-se em aparências", a frase original também pode ser interpretada como, "Resista ao esquecimento", no caso, o da nossa própria verdade, ou nossa união com Deus."Tentação", ou, l'nesyuna, sugere a possibilidade de nos perdermos nas aparências materiais. Isso é super importante `a noção derivada da prece Aramaica, que não haja nenhuma entidade externa para nos "tentar". Os estados de "tentação" são causados pelo nosso próprio esquecimento, que leva nossa atenção ao exterior mundano, desviando-nos de nossa plenitude interior." Mas livrai-nos do mal", provém de ela patzan min bisha, em que min bisha, traduzido por"mal", se extende, também, a significar "imaturidade". Enquanto estamos sincronizados com a presença interna da divindade, nossas palavras e açōes são certas para cada momento. Nessas circumstâncias, há abundância de sincronicidade, e experimentamos estar sendo levados pela divindade interna que nos respira para a vida a cada momento. Nossa "música" é então cantada por nosso criador, através de nós."Pois vosso é o reino, o poder, e a glória, para sempre, amen", do original Metol dilakhie malkutha, wahayla, wateshbukhta, l'ahlam almin, Ameyn, (ahhh meyn) em que Dilakhie, significando "vosso é o reino", mostra também a imagem de um campo fértil e abundante, enquanto Malkutha se refere `a divindade que permeia a criação, Hayla, à força encarnada da vida, em harmonia com essa criação, e Tesbukhta, traduzido por "Gloria", evoca mais exatamente a imagem de uma música, gloriosa harmonia que retorna a divina luz e som à matéria em equilíbrio. As raízes da palavra também apresentam a imagem de um fogo generativo, que leva à admiração.
Assim seja. "O reino de Deus é aqui, agora". Amor entre criador e criatura, ele está dentro do Criador e dentro de nós.
Tuesday, October 29, 2019
Eclipse do Sol
Saía de casa com meu cachorro, lá pelas onze e meia da manhã, pensando que o fenômeno celeste ja tinha no mínimo acontecido, pois que se faz tamanha onda em torno de eventos cósmicos que muitas vezes quase nada, ou mesmo nada, se vê deles, como a passagem do cometa Haley, há séculos atras. Nessas ocasiões, a indústria se aproveita, vendendo todo tipo de produtos em torno do evento.
Disseram-me que o eclipse de hoje seria `as 10:30, e, na cozinha, eu via a luz do sol lá fora, fixa e constante. Porém, assim que abro a porta, o jardineiro aponta pra sombra das folhas das nossas plantas na calçada, e me diz, "Olha o eclipse..."
Nunca pensei poder ver sinal de eclipse no chão, mas quem diria, a sombra das folhas refletia o que se passava no céu. Ao invés de projetar a forma dessas folhas, mesmo que com leve distorção, de acordo com a posição do sol, a sombra delas formava, esta manhã, um padrão completamente diferente, de pequenos "C"s, ou luazinhas crescentes. Por mais que haja explicações para fenômenos supostamente naturais, a primeira vez que a gente vê um deles se sente diante de um milagre. O que vi, na transformação das folhas em pequenos astros, foi o mundo vegetal literalmente refletir o cósmico; o solo se tornar eco do céu.
Peguei correndo os óculos adequados pra poder olhar o sol, enquanto levava o cachorro rua acima, entre exclamações de maravilhamento e pausas desajeitadas para reajustar os óculos, apreciar, registrar de qualquer jeito, no iPhone.
Através dos anos, ouvi muitas coisas sobre eclipses. Geralmente, as pessoas têm medo, ou ficam na defensiva, talvez pelo evento concernir uma interrupção da luz emitida pelo astro rei, tanto na que vem pra terra, como no caso da que acabo de ver, quanto na que vai pra lua, quando nosso planeta se bota entre esta e o sol. Soube de gente que nesses dias, nem quis sair de casa. Alguns falaram em reajustes e/ou quebras de relações, enquanto outros anunciaram novos começos. Evito me agarrar com interpretações que sirvam a coletividade, por isso não sigo astrologia, embora não lhe seja descrente. Independente desta, quanta gente pensou que o mundo não passaria do ano 2000, devido `a leitura que fizeram sobre o gesto do Menino Jesus de Praga? Quantos outros, traduzindo calendários da antiguidade, e sabe-se la o que mais, tiveram uma certeza tão fanática quanto obsessiva, chata e derrotista, que o ano 2012 seria fatídico?
Querer prever a qualquer custo é querer se proteger do imprevisto, do que a Deus pertence. Incapaz de suportar o que esta além de si, o eu racional gosta de certezas, pois que estas confirmam a própria limitação da sua natureza; a incapacidade de se abandonar. Eu tinha ouvido coisas sobre o eclipse, mas só posso acreditar no que eu própria senti do que vi, e que foi tão lindo. Olhos nos olhos entre satélite e estrela, na ousadia humilde da lua cobrir o sol, passando, obediente, delicada, reverente, com a harmonia languida de uma carícia que se espraia nas diversas camadas de azul `a volta, sem deixar de enfatizar o contorno de seus corpos celestes, eu vi, muito antes de uma interrupção de luz, a privacidade da pausa de um grande ato de amor; um copular cósmico.
Tuesday, October 29, 2019
O Mais Lindo Passeio do Mundo
Passei quase uma semana em Esalen, um lugar na costa da California em Big Sur, tipo duas horas de San Francisco. Me inscrevi num programa individual de reflexão, ao contrario da maioria dos que estavam la e participavam em grupo de workshops variados. O único jeito de poder se encontrar , quebrando, por um tempo, o estado de constante plantão em que a rotina nos força, mesmo sem que nos demos conta, no local onde moramos, é preciso se retirar. Por mais gregária e interdependente seja a especie humana, cada pessoa, enquanto individuo, deve se tornar consciente da sua unicidade, pra poder ficar em paz consigo mesma. Esses dias de silencio , solidão, e distancia da internet, quando eu só me comunicava com o céu, as árvores, o mar ali abaixo do despenhadeiro rochoso, e a minha própria escrita, foram maravilhosos pra mim. A sobremesa foi o passeio de carro pela costa, com meu filho Chris, que se ofereceu me buscar.
Sempre amei o mar, `a beira do qual vivi muitos anos no Rio. Em criança, levei muitos “caldos” das ondas; em adolescente, aderi, refrescando-me de vez em quando no seu abraço azul, `a “religiao” de se queimar, sob o sol tropical. Tornando-me mãe de Chris, o oceano me deu a sublime missão de apresentar a inocência do seu poder, ao poder da inocência de meu então pequeno filho, que se deleitava nas águas salgadas. Mas em todos esses anos de convívio com o mar, nunca tive com ele a relação, ou melhor, a comunhão que vivi, no passeio que mencionei. Pra começar, a estrada que pegamos, e que tinha sido fechada por vários dias, devido ao fogo que assolou diversas áreas na California, fôra recentemente aberta, e só havia nós, sobre ela. Em toda aquela imensidão, era como se fossemos os primeiros a chegar num planeta de pura beleza, eu e ele parando aqui e ali, para apreciar, fora do carro, os pontos mais dramáticos do encontro da fúria eufórica das ondas, espirrando sua branquidão nervosa nas pedras angulosas de seu caminho, para novamente explodir contra a rocha íngreme da costa. Quando havia extensão de areia entre o rochedo e as camadas de espuma branca, esta era impiedosamente submersa, pela corrida da massa de água que, inexorável, vinha investir contra a encosta final. Nem se tinha acesso a algumas daquelas pequenas praias, que oferecendo-se sómente `a contemplação, deixavam o mar intocável e inteiro, todo para si próprio. Sagrado.
Morando na California há vários anos, Chris, que tem sede de mar e de beleza, conhece bem o estado. Num dado momento, quando novamente decidiu estacionar na estreita faixa de terra entre a pista e o despenhadeiro, avistamos, alguns passos adiante, um grande e elevado assento, feito de dois grossos troncos de árvore em estado bruto, a não ser pela superfície polida em que se podia sentar. Saindo do carro, senti vertigem só de olhar, `a beira dos meus passos, na força do encontro do mar la em baixo, puro e indomável, com a costa, um espetáculo cuja vista nos aparece fatal; ponto máximo, quando a morte e a beleza se tornam parte da mesma revelação.
A vertigem é temor e vontade de perdão: aniquilação naquilo que nos ultrapassa.
Quando Chris sugeriu que eu me colocasse naquele assento, cujo alcance dependia de uma saliência num de seus lados, servindo como precário degrau para o alcance da superfície em que se podia sentar, perguntei-me se seria capaz. Uma vez conseguindo, e tendo a grandeza do mar a meus pés ao mesmo tempo que tão além do meu coração, senti-me no único trono verdadeiro de todo este mundo.
Tuesday, October 29, 2019
Espiritualidade Agressiva
Chris, meu filho, se saiu com a expressão do titulo, para definir a attitude de muitas pessoas em Boulder, esta cidade idílica no vale entre as Montanhas Rochosas, abrigando milhões de pessoas que se acham, se não iluminadas, no caminho da iluminação. “ Pra qualquer reunião, ou bate-papo, esse tipo de gente vem prefaciar o evento com mil termos New age, tipo, Vamos segurar o espaço (hold the space)… vamos lembrar que somos todos conectados com a criação original, vamos isso e aquilo”, disse Chris, e concluiu, “ Eles vem pra gente com uma espiritualidade agressiva!”
Achei a descrição perfeita. Parece que espiritualidade virou critério de diferença entre quem ta por dentro e quem não esta, como uma moda. Conhecemos pessoas que participam de círculos (supostamente espirituais) de maconha, de respiração, de peyote, de meditação “trans pessoal”, círculos para honrar o sagrado feminino, círculos de tudo que se pode imaginar, e se não menciono rituais de Ayahuasca entre eles, é por não querer jogar o sacramento da Floresta no mesmo saco que, “multi-místico”, lembra os pacotes “combo” do Mac Donald’s, que contem batata frita, Coca-Cola (tamanho grande, claro) sanduíche de três camadas, bacon, ketchup, etc.
Nem de propósito, quando estivemos na California nos feriados de Natal e Ano Novo, encontramos, na casa que nos foi alugada, milhões de exemplares de um livro de ensinamentos "espirituais", mas que considerei como sendo ensinamentos de poder espiritual, entulhados nas prateleiras da garage. Vendo o nome da autora, Chris, que alugou a casa pra nós, viu se tratar da dona do apartamento. Peguei um dos volumes pra dar uma olhada, mesmo que a capa, com figuras de eixos geométricos naquele tom roxo de luz de danceteria, contra um fundo negro também evocativo da atmosfera de nightclub, tenha me parecido feia em si, e ainda pior, super pretensiosa como ilustração do título pomposo do texto, que misturava termos científicos e espirituais, num mumble jumble esquizofrênico. Pra dar uma ideia geral do projeto, a autora definiu graça religiosa, da seguinte maneira:“Graça é o girar dos campos de torção que formam a matéria, a realidade, e a experiencia”!!! (Entenda isso e depois me conta se vc parou no hospício, na policia, ou em algum culto)
Pra completer a ideia geral do livro da mulher, informo que nas credenciais do cara que escreveu o prefácio, foi mencionado o título do livro que ele próprio escreveu, e que em ingles transmite melhor a pretensão de incluir uma ciência (Física) na esfera religiosa: “The Physics of Miracle”.Mesmo assim, li passagens aqui e ali do livro da proprietária, e logo o devolvi `a poeira da prateleira.Até então, eu tinha achado aquela casa perfeita, por tão bem encarar o mar, e ser dividida com equilíbrio. Essa divisão do espaço interno e da interação deste com o externo transmitia paz. Podia se ver diretamente o por do sol de cada uma de suas salas comunicantes, como também da varanda a que davam acesso. Podíamos estar todos juntos naquela area sem nos sentir um em cima do outro, repartindo o mar, o céu e o sol, enquanto fazíamos coisas diferentes. Me dei conta de como é bom poder ter pessoas que amamos simplesmente respirando sob o mesmo teto que nós, independente de qualquer comunicação verbal. Nós quatro, sem muito papo, mas com muito amor. Pensei que quem morava ali devia ter uma cuca boa. Mas depois que vi aquele livro, que no mínimo fora escrito ali, fiquei me perguntando como um visual tao esplendoroso se deixara ser mero pano de fundo pra tanta ambição. Pano de fundo pra espiritualidade “de metralhadora em punho”…
Nem a paz da linha do horizonte, nem a divindade da vista ininterrupta do mar pode fazer alguém pre meditado baixar as armas. E baixar as armas, estar desarmado, como nos mostra Michael Polland em seu livro "How to change your mind" é a única postura que abandona o ego, e permite o fluir do nosso eu profundo; o espírito que temos em nós. “Mas isso é California, isso é Estados Unidos, after all,” pensei. As armas americanas nunca são baixadas.
Em relação `a espiritualidade, elas se revestem de “ciência”, pois, diante da liberdade do espírito, a ciência , por outro lado, é algo que se pode controlar. Algo que tem regras a se aprender, obedecer, e fazer acontecer. Algo no domínio do ego.
Na terra do controle remoto, se tem a ilusão de poder fazer a espiritualidade acontecer, eventualmente apertando-se um simples botão. Mas pra virar passe tecnólogico, ela tem que ser primeiro transformada em ciência, algo sem mistério enquanto controlável e que se pode ser testado e por isso ensinado, tout simplement.
Obviamente, o livro da proprietária continha promessas veladas de sucesso financeiro. Quem quer controlar, certamente quer dinheiro. So acho que quem tem saco pra tentar aprender a controlar o mundo spiritual é incapaz de baixar as armas, e merece se enganar com aquele livro.
Tuesday, October 29, 2019
DisneysSense
Desde que Paola decidiu vir a publicar partes do livro que compus com o título acima, e que tem sido “a work in progress”, com ilustrações e textos de minha autoria, achei adequado traduzir a crítica intitulada “A Filosofia de Disney”, que este “work in progress” recebeu, da jornalista americana Peggy Mac Donald- Demosthenous.
“Juntando-se aos grandes pensadores, que através dos séculos tentaram descobrir o sentido da vida, a filósofa Eleonora Duvivier analisa a esfera mística e metafísica através de um tema, nesse caso, fora do comum: Disney.
Disneyssense foi precedido por seu outro livro “From Mars to Marceline- In Search of Disney” (De Marte`a Marceline- Em busca de Disney) que é uma mistura de fatos históricos relacionados a Disney, filosofia, e puro amor por Disney, Walt e o que ele criou.
Eleonora compara Walt Disney a pensadores de grande influência, como Sócrates, e Kierkegaard. Para ela, Disney identificou a esfera mística com a corporal, em novas formas de entretenimento, que incorporam nossos sentidos. As atrações revolucionárias que criou nos seus parques temáticos são as primeiras que dão aos espectadores a oportunidade de mergulhar nas estórias que estas desenrolam, e virar seus próprios atores.
“Disney plantou a semente do que, na arte contemporânea, se chama Interação Contemplativa , e que, referindo-se a obras de instalação, requerem a imersão do espectador dentro delas, para que se revelem, através da interação com este espectador, que ao mesmo tempo se torna agente”, ela diz, em Disneyssense. “A esfera mística, que considero a da comunicação entre realidades heterogêneas, é responsável, através desse espectador, por transforma-lo naquele que dá validez ao brinquedo, e portanto o recria, ao mesmo tempo que no personagem, recriado por ele mesmo.” Aqui, eu adiciono, em relação `a transformação mística desse espectador, que ele passa a ser a união de criatura e criador, assim como Walt, através de Mickey, quem ele é, e quem ele cria, representa o amor e o laço entre criador e criatura.
O exame que Eleonora faz da arte de Disney combina rigorosa análise, com ousada adoração por Walt Disney, e pela criação a que ele deu origem, que continua encantando os jovens e os jovens de alma, através do mundo. Às vezes, seu estilo etéreo é novo e único, como revela o seguinte trecho, de Disneyssense:
“ Injetando personalidade, como foco principal de seu desenho animado, aquele que em volta do qual tudo gira, acima dos limites do que conhecemos por mundo físico que, nesse caso, ao redor do personagem, encolhe, estica, superando suas próprias formas, ao se adequar `a expressão da personalidade, quer dizer, injetando personalidade, acima das leis da ciência, da lógica, ou da mera contingencia, Disney faz como que uma proclamação de alma sobre matéria. Do mesmo modo, sua reinvenção do elemento fisico, enquanto movimento e visibilidade da fantasia, representa a ascendência da vida, sobre a realidade”.
Eleonora se apaixonou pelo mundo de Disney, quando ainda criança. Com seis anos, viveu com seus avós-enquanto seus pais estudavam arte na Europa- frequentando uma escola de freiras no Rio de Janeiro, que lhe foi traumática. A menina de então encontrou-se num impasse, diante das lições de religião, que enfatizavam a penitencia e o medo do inferno, como caminho do Paraíso. Sentiu-se salva, pelo seu primeiro encontro com o desenho animado Disney, na tela do cinema.
“Dilacerada entre o medo ético de falhar com os princípios religiosos, e o pânico do diabo”, ela relata, “ eu fui, numa tarde abençoada, levada ao cinema, para ver A Bela Adormecida. Foi minha primeira vez, diante da grande tela, e de repente, nascendo do escuro, todas as cores do arco- íris me revelaram não só a beleza e magica do movimento de fantásticos, desenhados e multicolores, personagens, como a vitória do Bem, pelo amor; o Final Feliz, aqui na terra.”
O poder da animação Disney teve profundo efeito em Eleonora. “Desde então”, ela explica, “passei a me sentir ou no inferno, ou no paraíso. O paraíso era o mundo de Disney. Fosse em figurinhas, ou no próprio desenho animado, a imagem de Aurora, em A Bela Adormecida, ficou comigo pra sempre, trazendo um transcendente sentimento de alívio.
A caminho da universidade de Boston, para estudar filosofia, Eleonora fez sua primeira viagem a Walt Disney World. “Estar num contexo em que se pode “deixar rolar” é uma benção, e corresponde a um sentimento de redescoberta que é abandono, e ao mesmo tempo, reencontro.”
Amantes de Disney se relacionam com as emoções e idéias, que Eleonora articula com tanta eloquência, e acompanham suas reflexões poéticas on line.
Eleonora estudou filosofia nos Estados Unidos, Inglaterra, e Brasil. Depois de alguns cursos a nível de pós graduação, ela deixou os estudos acadêmicos, para seguir seu interesse por Disney.
“Olhar Disney filosoficamente tem mais a ver com meu temperamento introspectivo, que naturalmente questiona a vida, do que com uma decisão a priori de faze-lo”, explica. “Essa visão amadureceu quando eu finalmente li as biografias de Walt Disney, assim como muitos outros livros sobre a animação Disney, e percebi a afinidade entre o temperamento de Walt, sua conduta e attitude diante da vida, com tudo a que deu origem.
Bem diferente das biografias de Walt Disney, Disneyssense procura capturar o espirito de Disney num nível metafísico. Com suas conclusões místicas, Eleonora corteja Disneyphilles de todos os lugares e idades.
De acordo com ela, eles se classificam nas seguintes categorias:
Disney historiadores, Disney aficionados, Disney “geeks”, Disneyans (aqueles que encontram suas raizes no mundo de Disney), Disneystatics (que conheceram a felicidade através de Disney) Disneykharmics (que têm compulsão de ir aos parques, como se os conhecessem de outras vidas) e Waltists (que pensam ser os únicos que realmente decifram Walt Disney).
Colocando o homem atrás de Mickey num pedestal, Disneyssense seguramente agrada a todos estes.
Peggy Macdonald-Demosthenous
Tuesday, October 29, 2019
Oona Chaplin: Fada, ou Anjo?
Ja disse Marcel Proust que os verdadeiros paraísos são os que perdemos (e reencontramos).
Assim me senti quando ouvi Oona Chaplin cantar, numa festa a que fui recentemente com minha família, em Beverly Hills. A voz daquela moça encantada tem gradações tao etéreas que parecem estar entre dois mundos. Ao mesmo tempo em que se pode escuta-la, ha momentos em que parece estar prestes a se diluir numa dimensão inatingível aos nossos sentidos, através dos vários níveis de tom, de som e de emoção que se sucedem na delicadeza crescente da intensidade do coração, como que quase voltando à dimensão do além , que lhes dá origem. A dimensão das fadas, dos anjos, e das ninfas que os gregos acreditavam habitar dentro das árvores; daqueles que inspiram em nós uma reminiscência immemorial de bem-estar; numa vontade de “partir” para o Paraíso que nos faz redescobrir.
Eu ja havia sido apresentada `a Oona por meus filhos, que ja a conheciam. Sabendo da tradição de amor que minha familia tem por Charles Chaplin, (minha mãe ganhou prêmios imitando Carlitos em varias ocasiões, inclusive no desfile a fantasia do transatlântico em que viajava com meu pai) Chris me disse para ser discreta com Oona. Eu estava curiosíssima, porque ele e Olivia afirmaram que ela se parece com o avô Chaplin. De fato. Afora a boca, que os dois têm em comum, a semelhança vem principalmente de uma expressão de maravilhamento que vem la do fundo. Da alma, talvez.
Quando Olivia me levou até Oona e me apresentou como sendo mãe dela, Olivia, e de Chris, Oona me saudou com carinho,
“Hi Mom…”
“My whole family loves your Grandfather, and I can see him in your face!” falei. Ela sorriu.
Isso foi há mais de um ano, e naquela época não cheguei a ouvi-la cantar. Mas senti minha mãe ali comigo, diante de uma manifestação tao direta de Carlitos, e me emocionei. Nunca pensaria, entretanto, que o canto e interpretação de Oona ainda mais pudessem expressar para mim a dimensão sobre humana que Chaplin atingiu com seu gênio, numa linguagem totalmente diferente, bem entendido, mas da qual ele se orgulharia.
Varias pessoas cantaram nessa festa. Embora profissionais, eram somente deste mundo, e, se animavam a dança, por um lado, por outro, puxavam todo mundo de volta pra terra.
Oona canta em espanhol, português e inglês, mas seja qual for o idioma escolhido, o que ela realmente fala é a linguagem dos anjos.
Para quem não sabe, ou não lembra, Oona tem o mesmo nome de sua avó paterna, Oona O’Neill, que encontrou Charles Chaplin aos 18 anos, estando ele ja com 52. Ela era filha do dramaturgo americano O’Neill, o qual, um pouco mais moço do que Chaplin, desaprovou o casamento. Oona e Charlie tiveram oito filhos, sendo Geraldine, que é a mãe da cantora que conheci, a mais velha dos oito. Atuou em muitos filmes, incluindo “Hable con Ela” de Almodóvar. Seu primeiro grande sucesso foi em Doutro Jivago. Mais importante do que ser linda, ela tinha uma natureza de discrição aristocrática, e uma delicadeza que, como na filha, é pura força spiritual, assim como a do Beija-Flor cujas asas velozes, no seu movimento quase invisível, tocam o outro mundo, e, como que libertando-o da gravidade, lhe dá acesso ao mel das flores.
Como testemunha da beleza etérea, so posso concluir este texto citando aquele que tanto convivia com ela.
Nas palavras de Proust sobre uma frase musical da sonata de Vinteuil, (identificada por muitos à autoria de Cesar Frank) ele diz que tal frase é revestida em som, mas vem do mundo do invisível, e se não nos prova a existência desse mundo e da vida eterna, nos rende praticamente indiferentes à morte, questionando até mesmo a possibilidade desta não existir.
Falando sobre a frase, Proust diz: “ Seu destino estava ligado ao da alma humana, da qual ela era um dos ornamentos mais distintos e especiais. Talvez seja o nada o estado verdadeiro, e a vida eterna é apenas um sonho; mas se assim for, sentimos que essas frases musicais, essas concepções que existem em relação ao nosso sonho, também não devem ser nada. Nós morreremos, mas teremos como reféns essas cativas divinas que seguirão e repartirão nosso destino conosco. E a morte na sua companhia é de algum modo menos amarga, menos ingloriosa, talvez até menos provável.”
E nessa sensação inspirada pelo canto de Oona, as seguintes palavras se aplicam, ainda referentes, no caso,`a frase musical:
“… Humana, desse ponto de vista, ela ainda assim pertencia a uma ordem de seres sobrenaturais que nunca vimos, mas os quais, a despeito disso, reconhecemos e aclamamos arrebatados quando um explorador do invisível ( um artista) consegue trazer um deles do divino mundo a que esse artista tem acesso, para brilhar por um breve momento no firmamento do nosso. Isso foi o que Vinteuil fez com a pequena frase.”
Isso é o que Oona faz com seu canto.
Tuesday, October 29, 2019
“O diabo é Burro” - Hélio Pelegrino
O psicanalista Hélio Pelegrino- pai do arquiteto, artista, e grande amigo Helinho- além de inteligente e poeta, escrevia como um príncipe. Soprado pelas musas, ele disse, com a espontaneidade infantil das verdades "recebidas" da dimensão transcendente, que o diabo é burro, e por isso nunca ganhará. Gênio, Hélio, que Deus o tenha!
Lembro-me dessa afirmação dele a toda hora, agora que a burrice está no poder nos dois hemisférios americanos, e em outros lugares do mundo. Lembro-me do que ele disse quase compulsivamente, como um mantra.
Hélio estava certo no tocante a burrice, pois sendo essa a principal característica do presidente brasileiro, comprovamos, no momento atual, que ela vai de mãos dadas com o fogo infernal, metafórica e fisicamente. Mas devemos acreditar que Hélio estava certo, também no que concerne a impossibilidade de vitória do rei da burrice. Esse fogo, chamando a atenção do mundo, haverá de levar os gregos e troianos que povoam este mundo a se darem as mãos e correr para apagá-lo. Vergonha que o Brazil precise disso, mas já dizia meu pai, que “Quem não aprende em casa vai aprender a duras penas com o mundo” quer dizer, vai aprender sentindo na pele as consequências de sua cegueira. Os idiotas no poder ja devem estar sentindo na carapaça o desmascarar de sua burrice. A inteligência é uma qualidade rara, na sua dimensão divina. Quem não a possui, tem que aprender à força, por auto interesse, pois os burros nunca aprenderam “em casa”, quer dizer, com a sua alma. Mas o grito do planeta, ferindo os ouvidos dos que tem um mínimo de consciência, lhes dará uma lição que, compreendida ou não, vai mandá-los pro “diabo que os carregue.”
“A natureza sempre ganha” disse Camille Paglia, outro gênio. (Desculpem-me as feministas pela minha deferência gramatical ao masculino, quando se trata de palavras que podem simbolizar os dois sexos- acho que fica visualmente e sonoramente mais bonito, e simples. “Gênia” não existia, (O computador por isso corrige, tanto com o circunflexo na letra e, como sem ele, e me soa mais sexista do que “gênio”. Há que se ter humildade).
Antes que a natureza ganhe `a custa de retaliar totalmente suas feridas (o que já começou a fazer, com o aquecimento global) a burrice ja terá virado cinzas.
Thursday, September 19th, 2019
O Conforto e o Mêdo
Numa época esquecida da humanidade, as pessoas viviam de modo bastante diferente. Em comunhão com a natureza, elas também estavam de braços abertos para o imprevisto. Ninguém planejava, ninguém se antecipava ao presente para tentar controlar o futuro, na ilusão posteriormente tao comum a todos, de estar preparado e defendido diante do inesperado. Todos eram felizes, ou se não felizes, desanuviados. Mas havia dois primos irmãos bastante anêmicos, solitários, parecidos, e frustrados. O nome de um era Conforto, do outro Medo. Sem amigos e sem poder de comunicação, eram sombras, que viviam atras das pessoas tendo que segui-las para se movimentar. Eram alongados e pretensiosos, imaginando-se vir a ter grande poder, se a
oportunidade certa lhes fosse dada. Qual seria ela?
Sua grande ambição era se desenvolver e dominar todos os humanos. Tinham certeza de que conseguiriam, se pudessem ficar mais fortes e independentes. Sabiam que para isso, tinham que entrar dentro das pessoas, pois somente no âmago delas poderiam realmente crescer ao ponto de se tornarem segunda identidade de cada uma. Mas, abandonados como eram, nem conseguiam
melhor se aproximar de alguém.
Num dia ensolarado, em que todos curtiam o mar mais lindo do planeta, os dois primos quase desvaneciam na areia. O sol do meio-dia, na cabeça das pessoas, não permitia que tivessem sombras, e os dois primos tornaram-se resíduos, lembranças, ou germes de projetos futuros, agonizando.
“ Já estou cheio de ser ignorado, e de só existir como projeção escura da forma de alguém, quando a luz o ilumina”, gemeu o Medo.
“Temos que fazer um plano de ataque…” sugeriu o Conforto.
“Que plano? Voce é um moloide, que so gosta de almofadas e coisas que esses humanos não precisam!”
“E voce? Que so faz se gabar que consegue secar a vida de qualquer um, e esta aí nas últimas?
“Não vamos brigar, somos muito parecidos e dependemos um do outro…”
Conforto nem mais tinha forças pra falar quando, de repente, havendo o sol se aproximado mais um pouco da linha do horizonte , a projeção de uma pequena sombra se fez atrás de uma moça que passava perto do agonizante. Atraído pelo vício da interdependência, característica fundamental das sombras (como parasitas que estas são dos seres na luz) assim como marca fundamental dele próprio, o Conforto imediatamente se fundiu com ela. Sentindo-se um pouco
mais forte, disse ao Medo, “Moloide ou não, tenho um plano que não só vai me fortalecer, como te eleger rei, em consequência da minha sedução!”
“Reinarei como consequência de voce? Ta louco? Sou eu que venho primeiro! Sou eu que dei origem a voce!”
“Ao contrário! Voce vai ver que a necessidade de mim é o que dá origem a voce, e o que te faz crescer!” reclamou Conforto.
“ Seja o que for, contanto que me tire dessa merda…”
Enraizando-se de vez na sombra da moça, o Conforto se transformou em alucinações, que invadiram a cabeça dela. A primeira foi uma barraca colorida, que serviria como abrigo daquele sol que estava já quente demais. Antes que a moça pudesse desejar a barraca, esta se transformou numa cabana de praia, sobre cadeiras reclinadas, separadas por uma mesinha coberta de refrescos, e forradas com colchonetes. “ é disso que todos precisamos, é isso que vai fazer a praia ficar mais agradável e macia”a moça pensou, antes de ir dormir na relva. Quando começou a sonhar, facilitou o trabalho alucinante do Conforto. Viu a casa de que passou a necessitar, com teto sobre sua cabeça pra lhe defender do vento, da chuva, e até do calor, com aquele ar refrigerado que lhe fez se perguntar como havia conseguido viver sem tudo aquilo, enquanto mais imagens de segurança e facilidade continuavam a invadir sua cabeça. Imagens de coisas
que lhe defenderiam contra as manifestações da natureza, e contra o imprevisto. Imagens de aparelhos tecnológicos que poderiam prever o clima, os furacões, ajudando a humanidade a “se prevenir”, a ficar capaz de planejar!
“Como fomos tão cegos até agora?” ela se perguntou, “tenho que transmitir isso tudo aos outros, para que comecemos a fazer todas essas coisas maravilhosas!”, concluiu, com uma urgência que até então lhe fôra desconhecida.
Não demorou muito para que, depois desse “contágio” com ela, a humanidade fabricasse tudo aquilo que tinha sido miragem. Logo logo, perceberam, com muito orgulho, terem se tornado capazes de mapear seus dias, e terem criado algo chamado “Zona de Segurança” (Safety Zone) em torno de cada um. Não sairiam mais dela, pra que? Se tivessem que viajar para áreas diferentes, poderiam planejar, e desse modo, criar novas defesas. Ninguém mais seria “porra louca” como tinham sido, ninguém mais estaria exposto de peito aberto, ninguém mais confiaria no próximo, menos ainda nas surpresas de Deus, no que a Ele pertence!
Assim armados, não existiria mais nada que pudesse ser além deles, nada mais que pudesse lhes surpreender, ou que não pudessem “controlar”. O Medo, o qual pouco a pouco se fortalecera, enquanto tudo isso acontecia, tornou-se gigante. Era ele que impediria a todos ousarem sair do que fôra criado como garantia de sobrevivência. Era ele que fez o sobreviver macio e acuado ficar mais importante que o viver. E foi ele que desenvolveu a defensiva de cada pessoa ao ponto desta se transformar em agressão. Soberano, ele originou uma necessidade até então desconhecida, a necessidade de poder. Os que tivessem mais poder estariam seguros e garantidos pra sempre. Assim, ele finalmente transformou a religião, algo que havia sido espontânea e indiferenciada telepatia com os deuses, em motivo de diversidade conflitante, briga, e desconfiança.
Sentado num trono, atrás da humanidade, o Medo nunca conseguiu deixar de ser sombra, mas finalmente criou a guerra, havendo gerado seus filhos, Hesitação, Preguiça, Controle, Angústia, Defensiva, Desconfiança, Isolamento, e Agressividade, Fanatismo, Ganância, Vontade de Poder, e Fundamentalismo, assegurou pra sempre sua soberania!
Medo é distância de Deus, distância de nós mesmos!
Tuesday, October 29, 2019
O Passarinho foi Pousar lá na Lua…
Um dos meus sonhos em criança era segurar um passarinho. Pra mim eles eram como brinquedinhos vivos, nascidos do verde das árvores e do azul do céu, de uma alquimia tão delicada, que a gente so podia olhar pra eles. Os que se vendia na época, tinham que ficar dentro de uma gaiola, e isso me dava aflição, mas que fazer?
Eu era ainda bem pequena e nem falava direito, quando resolvi fazer um poema, o do passarinho. Eduarda, minha irmã mais velha, era uma poeta consagrada, e achando ela o máximo, tentei ficar `a altura. Estava olhando pro céu, e de repente anunciei pra nossa mãe o meu nascente poema: “O papainho voou, Foi pousar lá na lua…” Nesse momento, imaginei um passarinho pulando de la pra ca, no galho alto de uma árvore, e continuei: “O tabaio(trabalho) do papainho, é pra la e pra cá… o nome da Eduarda”
Me lembrei disso, quando o nosso passarinho Marley decolou deste mundo, ha dois dias. Ele pertencia `a minha filha Tweety, e estava conosco havia dez anos. Era um connure, nativo da America Central, e parecia um papagainho. Pegou uma gripe, e Tweety o levou pro veterinário, que recomendou um hospital chocante de animais, numa cidade perto daqui. Pra la ele foi, e mesmo que o vet tenha avisado que ele poderia não sobreviver os exames, nosso passarinho resistiu até sedação, pra tirar raio x do pulmão. Fomos visita-lo no dia seguinte, e ele tinha melhorado muito. Pensei que breve estaria pronto pra voltar pra casa, do jeito como ele adorou nos rever e como ficou encostando a cabecinha no rosto de Tweety. Na minha vez de segurar ele, conversamos muito. Com ele deitado na palma da minha mão de barriga pra cima, como costumava fazer, eu lhe dizia que tinha valido todo aquele esforço, e ele fechava os olhinhos.
Compramos Marley em Madison, e ele se tornou pra Tweety e eu, uma fonte de humor, comunicação, e carinho. Realizou o meu sonho de segurar um passarinho, e muito mais. Era lindo ver como um serzinho tão pequeno sacava que lhe dávamos amor e correspondia, com uma infinidade de pios e expressões diferentes. O mais incrível é que ele até se mostrava pra gente.
Um dia em que comentávamos o seu poder de compreensão e as suas proezas, ele, que estava empoleirado no ombro de Tweety, desceu pra cama dela, onde nos sentávamos, e começou a desfilar entre nós duas, de lá pra cá, e daqui pra lá, com a cabeça erguida e o peito estufado, todo pimpão. Tava na cara que se sentia honrado, e queria nos mostrar que merecia e entendia.
Aquele “show” era tao fofo que a gente não conseguia parar de rir, e ele de “se mostrar”. Proibi que lhe aparassem as penas das asas, pra ele poder voar pela casa, e ele adorava pousar nos lugares altos e ficar lá de cima olhando o que acontecia. Em Madison, sobreviveu a batida de uma porta no seu bico. Tinha até sangue, e tivemos que leva- lo a uma clinica de emergencia, depois da meia noite. O vet disse que ele devia estar com dor de cabeça, lhe deu um analgésico, e disse que era melhor ele passar a noite lá. Se não vingasse, o vet nos telefonaria de manhã cedo. Rezei pra que não telefonasse, e la pelas dez eu própria telefonei. Marley estava pronto pra voltar pra casa, novo em folha.
Depois de dois anos em Madison, resolvemos mudar pra Boulder. O vet avisou que pássaros são muito sensíveis, e que não esperássemos que Marley sobrevivesse mudar de estado, de cidade e de casa, pois até pras pessoas é estressante se mudar.
Tínhamos também um cachorro shitzu super apático, e resolvi dar pagamento extra a um dos caras da mudança, pra trazer os dois no seu caminhão numa viagem especial de Madison, quase no norte do país, a Boulder, no centro Oeste. Steve ficou chocado, tendo sempre me dito que americanos so fazem o trabalho que a sua profissão determina, e que aqui não tem essa de oferecer mais grana pros caras darem “um jeitinho”. Mas o cara da mudança adorou a proposta, e pagamos o suficiente pra ele pernoitar com os animais em algum hotel de estrada. Ele preferiu vir direto, e chegou bem antes do esperado, com as pupilas dilatadas por algum “speed” que deve ter tomado pra conseguir dirigir a noite inteira, com os bichinhos a salvo. O cachorro, porém, de esquisito que era, pirou. Entre inúmeras tentativas de fuga, só fazia lamber as paredes da casa que alugamos, com uma devoção religiosa. Nem comer ele queria.
Suas escapadas pra rua movimentada em que morávamos eram uma calamidade, até que um dia, conseguiu fugir de vez e foi parar na Humane Society. Deixei que de la fosse adotado. Ja tínhamos ganho a cadela do meu filho, pois ele estava acabando a universidade em Boulder e se mudando pra California. Canina excepcional, essa cadela era, porém, uma ameaça pra Marley.
Achava que ele era caça, e ficava super confusa com as broncas que levava quando tentava dar botes nele. Um dia, Tweety saiu às correrias, esquecendo que ele estava solto no seu quarto, e deixando a porta aberta. Nossa! Nala, a cadela, praticamente mascou” o passarinho. Tweety o encontrou debaixo da mesa do computador, quase totalmente depenado, as costas em carne viva, e as asas pela metade. Quando o vi, quase tive um ataque do coração, e corremos pra emergencia de animais. A veterinária veio com aquele papo de stress, pra nos avisar que seria difícil ele sobreviver. Radiografou ele e disse que não tinha quebrado nada, mas deveria passar a noite imóvel, com uma camada de remédio nas costas que ele não podia bicar nem comer. Acho que Nala “brincou” com ele, e a voz da consciência fez com que ela o “poupasse”, pois sua mandíbula parte qualquer brinquedo à prova de cachorro.
A veterinária botou uma gola de plástico em volta do pescoço do passarinho, pra que não pudesse bicar o remédio, e aí sim, ele se estressou. Começou a pulular desequilibrado, tentando se livrar da gola, que eu então removi, “ He can’t have access to the medicine” a mulher avisou, enquanto eu mentalmente lhe dizia “fuck off”, e decidia manter ele entre as minhas mãos. Pra passar a noite, o alojei entre os meus seios, e ele dormiu numa ótima, enquanto eu velava. De manhã, o remédio fora absorvido, e ele pode se recuperar na gaiola. Pra ele, stress não existia.
Durante os anos aqui em Boulder, ele também sobreviveu duas tentativas de fuga, uma no inverno, e outra no verão. Tweety o viu saindo pela porta afora, e pousando la no alto do galho de uma árvore. Subindo no telhado do vizinho, ela o chamou, e ele voltou pro ombro dela. Quando isso aconteceu no inverno, ela achou que foi por causa do frio que ele voltou, mas no verão ele agiu do mesmo modo. Muito fofo.
O passarinho revelou coisas lindas pra gente. Morando numa sala ao lado do quarto de Tweety, ele começava a piar, assim que ela abria os olhos de manhã. Mesmo sem poder ver ou mesmo ouvi-la, ele adivinhava o momento em que ela acordava.
A percepção dos pássaros é telepática, e a inteligência deles vem de outra dimensão. Se dar conta disso é aceitar um lindo mistério, e se livrar um pouco da auto- importância da nossa especie humana, que pensa poder explicar totalmente os animais através da biologia e da pura necessidade de sobreviver. Essa auto-importância detesta o mistério.
“Entendendo” e curtindo o nosso carinho, e se botando disponível de uma maneira que no elemento natural não poderia, ele confirmou que o amor é a única linguagem que desarma, cura, e fala a todos os seres. O amor, maior poder de individualização, vê em cada um, por mais pequeno que seja, o
mundo que é em si, içando-o do anonimato e o fazendo renascer.
Durante rituais de Ayahuasca aqui em casa, eu saia da sala e ia conversar com Marley, pois os animais “sentem” a força do sacramento da floresta. Numa dessas vezes, eu me dei conta de como ele estava mais bonito e vistoso, tendo a extensão vermelha do seu peito tomado a forma de um coração, e ficado
mais vibrante e chamativa. Era primavera, e a natureza embelezara o passarinho pra que ficasse mais atraente, como em geral acontece com os animais nessa época de acasalamento.
Me ocorreu com a maior tristeza que nesse sentido a beleza de Marley não lhe serviria pra namorar, e fiz questão de lhe dizer que mesmo assim ela não era vã, “ Voce está lindo passarinho, não pensa que a gente não nota e não aprecia esse seu peito lindo, e todas as cores que voce tem!”
Empoleirado no alto de um armário, ele ouvia tudo com atenção. E mais um mistério: Tenho certeza que entendeu, assim como tenho certeza que, como falei pra Tweety, quando ela veio me dizer que ele tinha partido, “…Ele foi pousar lá na lua e de lá voar pro paraíso!”