Txana e o Vento

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Numa última noite de uma visita ao Rio, eu e minha filha Olivia nos vimos sozinhas, sem ninguém de quem nos despedir. Eu que nasci naquela cidade, ja não era mais parte da rotina dos habitantes, mas tampouco era turista. Gostaria de encontrar alguma coisa pra fazer que distraísse Olívia, que lhe desse a sensação de participar um pouco mais daquela cidade que ela tanto adorava. Mas o que?

Foi então que Txana telefonou, e disse que viria jantar conosco, ali no hotel onde estávamos, cujo restaurante é em frente a praia do Arpoador. Eu e Olivia escolhemos uma mesa ao ar livre, na calçada, e ficamos esperando. Mas como o restaurante pode ser acessado pela praia e pelo hotel, que dá pra rua, ficamos olhando para duas direçōes opostas. Dali a um tempo distinguimos a silhueta de Txana caminhando na calçada do mar, ao nosso encontro. O vento soprava, e, a despeito das luzes dos postes que iluminam a praia, a imagem de Txana, andando livremente, não era nítida, como que misturada ao movimento dos próprios elementos; do mar, da brisa, e das gradaçōes da luz. So então percebi que ele caminha de um modo totalmente diferente dos outros. Percebi que não era a pouca luz, ou o caos que o vento causava nas formas visíveis, como as folhas dos coqueiros que pareciam se mexer em todas as direçōes, o que nos impedia ver Txana com clareza, mas a sua própria maneira de andar. Enquanto na maioria das pessoas, a parte inferior do corpo se mexe praticamente independente da superior, todo o ser de Txana participava do seu caminhar, como uma alga nadando no mar. Se a perna direita era a que vinha na frente, todo o lado direito de seu corpo parecia prolongar o movimento dela em linhas invisíveis, e reciprocamente, com a esquerda. A principio, lembrei-me de Mogli, no filme Disney “The Jungle Book”. Pensei que seria o andar adequado `a floresta, mas lembrei-me de outros índios que conheço, e que não caminham daquele jeito. Txana é único nos menores movimentos, que são absolutamente livres, mas expressam, ao mesmo tempo, a unidade do seu ser. Uma vez Olivia observou que ele é tão “na dele”, como uma criancinha que não está nem aí pras convençōes, e pra uniformização do que se faz. Olivia esta certa. O caminhar de Txana reflete a absoluta espontaneidade, em que físico e emoçōes se expressam reciprocamente. Na verdade, Txana caminha com o coração, e com os elementos ao seu redor.

Sentou-se a nossa mesa, e pedimos o prato que ja sabemos ser preferido por nós três, a muqueca de peixe, com caipirinhas de maracujá.

Agradeci a Txana vir nos visitar de um momento pro outro. Ele parecia um pouco cansado, tendo, na verdade, vindo de trabalhos diferentes. Lembrando-me da estória que nos contou da sua vida na cidade, para onde veio com doze anos, sem dinheiro e sem saber falar a lingua portuguesa, e lhe perguntei se durante aqueles anos se sentira discriminado por ser índio. Embora sempre se diga que no Brasil não há racismo, este acontece de maneira bem mais velada do que exclusão, ou agressividade física. Se revela o tempo todo, na atitude condescendente dos civilizados em relação aos nativos, como se entre eles estivesse constantemente expresso o acordo de cada macaco ficar no seu galho. Canso de ver pessoas civilizadas se comunicando superficialmente com os índios, sem fazer qualquer esforço para “compreender” o mistério de raizes profundas que todos deviam repartir. Quando “civilizados” falam em cuidar da natureza, por causa da ecologia, estão se preocupando com a sua própria sobrevivência. Os índios, por outro lado, a respeitam independentemente de interesse próprio, por que são humildes diante da criação, pois pra eles a natureza é espírito, e não somente o que lhes enche a barriga.

Mesmo que as fontes naturais do planeta fossem ilimitadas, e ninguém precisasse se preocupar com qualquer escassez, eles não se dariam ao luxo do desperdício, ou do acúmulo de bens. Nunca estariam querendo se poupar com mais conforto, ou se amofinando na busca de objetos industriais cada vez mais idealizados para “amaciar” a vida, como que acenando a bandeira de eternidade através da matéria. Ao invés disso, encaram a finitude do corpo como uma etapa na sua grande conexão com a criação. Não sofrem do medo que sempre nos faz pensar adiante; o planejar para se garantir, para se fragmentar, impelindo-se constantemente a um futuro que ainda não existe, ao “nada”.

Txana me respondeu que pôde se sentir estigmatizado por ser índio, e acrescentou, “… Mas aprendi muito com o vento…”

Antes de lhe perguntar como e o que o vento lhe havia ensinado, me preparei para ouvir, da parte dele, alguma explicação mítica, distante e inacessível a nosso modo de pensar. Algo que apresentasse o vento como alguma entidade da bela fusão que so eles sabem fazer, entre a natureza e o espírito. Mas a resposta de Txana foi simples, como o seu caminhar, “O vento pode levar as coisas…. Eu só tinha que deixar o vento levar de mim tudo que me dissessem de ruim…”

Perplexa a princípio, me senti como o aluno de Zen Budhismo, o qual, ousando perguntar ao mestre de que exatamente se tratava a atitude Zen, leva um tapa na cara. Como a resposta de Txana, aquele tapa não se tratava de uma agressão vazia de sentido, e sim um chamado de volta, um retorno ao ser puro e original que dispensa as correntes da lógica, da representação verbal, e de todos os desvios da sintonia com o o presente tangível, fisico e absoluto, aquele que pode enxergar no vento, a limpeza da alma.

Eleonora Duvivier