Na Floresta com Benki e Proust
By Aniwa Gathering 2019
Quando primeiramente pensei em visitar os índios Huni Kuin na floresta, fui obrigada a considerar todos os possíveis e impossíveis riscos que correríamos, contagiada pela aflição do meu marido, que, americano, odeia mosquitos, não pode viver sem ar refrigerado no verão, e não dispensa a proteção do artifício, a certeza de regras, leis, e tudo que programa o comportamento humano. Sabendo que eu levaria nossos dois filhos, me chamou de louca e irresponsável. Naquela época, Olivia, que sempre foi complicada para comer e super sensível a problemas digestivos, só tinha 13 anos, e era magrinha além da conta. Sem saber se seria fácil levar no barco que vai até a aldeia, os muitos litros de água mineral que precisaríamos por alguns dias, comecei a achar que meu marido tinha razão, e pouco a pouco pensei ter desistido pra sempre de ir `a floresta. Afinal, se eu própria nunca fui daquelas que gostam de acampar, e aguentam, com espírito de aventura, as privaçōes de coisas elementares com que geralmente contamos, pareceu-me inconcebível submeter minha delicada filha à tal situação.
Mas vindo a encontrar Benki no Rio, alguns anos depois, fiquei admirada com a seriedade e o foco que ele transmite, e jurei a mim mesma arranjar um jeito de meus dois filhos o conhecerem. Sabia, entretanto, que ele quase nunca vai ao Rio, e praticamente só viaja para o estrangeiro. Um ano depois, decidi ir `a floresta com Chris, que ja tinha 27 anos, e Olivia, que ja alcançara os vinte, mesmo sem saber como contactar Benki e obter certeza de que ele estaria disponível. Só poderia alcança-lo por Facebook, e assediado que ele é, não respondia minhas mensagens. Quando resolvi desistir e avisar Olivia pelo FB, vi que não só ela estava online, como Benki. Tentei novamente contacta-lo, e ele consentiu que fossemos, mas avisou que dali a alguns dias, estaria ocupado com um time da TV Globo, que iria la na sua aldeia filmar. Eu e meus filhos estávamos no Brasil de visita, mas o aeroporto em Rio Branco, segunda etapa da viagem, estava fechado devido a um incêndio, e não podíamos comprar passagens pra lá. Como
Apiwtxa, a aldeia Ashaninka, fica no limite entre Brasil e Peru, imaginei que voltando aos Estados Unidos poderíamos sair direto de Los Angeles para Lima, e de Lima, prosseguir. Meu raciocínio foi simplista, eu estava longe de imaginar que era um milhão de vêzes mais fácil alcançar
Apiwtxa sem sair do Brasil. Estávamos pensando chegar dois dias antes do pessoal da TV Globo, para que Benki tivesse algum tempo pra nós. Quando o conheci, ele deu sessões individuais de reza durante as quais falou para a pessoa em questão muitas verdades sobre ela, e eu queria que pudesse fazer isso com Chris e Olivia.
Determinada além de mim mesma e da geografia do mundo, pedi a Chris, que já tinha ido sozinho à floresta visitar aldeias Huni-Khuin e tinha amigos americanos que se aventuraram por aldeias indígenas no Peru, para descobrir o caminho, organizar todas as conexões e meios de transporte que deveríamos pegar para chegar à aldeia Ashaninka. Chris passou dois dias no computador, pois, obviamente, nenhuma agência de viagem programa tal peregrinação. Eu não tinha idéia de quantas conexões teríamos que fazer, tampouco da extensão de água que deveríamos transpor de canoa a motor, mas estava cada vez mais firme no meu propósito: Meus filhos místicos e yogis tinham que encontrar Benki, nem que leva-los até ele fosse a última coisa que eu fizesse na vida. Para dar uma ideia da nossa jornada, que durou doze dias, estivemos em trânsito a maior parte do tempo, tendo que parar em nove pequenas cidades e vilarejos, para finalmente poder passar dois dias em
Apiwtxa.De Lima fomos pra Pucalpa, onde pegamos um avião de missionários que nos deixou em
Breu, aldeia indígena no Peru, de onde passamos `a canoa rumo a Marechal Thaumaturgo, ja no Brazil, e de lá prosseguir mais cinco horas rio acima, para Apiwtxa. Não consigo esquecer o momento em que vi a estreita canoa que nos levaria, atracada num nível mais baixo do que o chão de beira do rio, com nossos pertences empilhados sob coberta de plástico, entre dois dos pequenos bancos em que nos sentaríamos. " É isso o barco?", perguntei a Chris, "...Você acha que seria um transatlântico?", ele brincou, enquanto me ajudava a entrar na canoa com minha mochila nas costas, para que eu não perdesse o equilíbrio. "Eu ja sabia que não teria banheiro no barco, mas mesmo assim esperava encontrar um bar ...", confessei, chocada com a minha própria alienação. Ainda alienada, achava que Marechal Thaumaturgo seria nossa próxima parada, e assim que nos sentamos na canoa, perguntei ao barqueiro, o qual dirige o veículo de pé na pequena popa, quantas horas levaria até lá. Ele parecia bem velho, e não dava pra perceber se seus olhos estavam quase fechados por serem puxados, ou por estarem contra o sol, ou porque sua visão ja era fraca. O tom hesitante com que respondeu, " Três horas...", não me impediu acreditar que ainda em plena luz do dia, chegaríamos `a reta final.
Chris tinha comprado um garda-chuva para Olivia e outro pra mim, para que conseguíssemos viajar na sombra, pois o sol lá bate super forte, e me disse que se ficássemos cansadas naquele banco tipo tábua, poderíamos nos encostar na nossa própria tralha, que formava um monte irregular bem atrás de onde me sentei com Olivia.
Partimos. A canoa ia devagar, e o rio, naquela época do ano, não só estava baixo, como cheio de troncos de arvores, galhos grossos e pontudos se espichando da superfície, e com os quais, se nos chocássemos, fariam a canoa virar sobre nós com motor e tudo, podendo ate mesmo nos matar, vim eventualmente saber. Enquanto a canoa prosseguia, não podíamos deixar qualquer parte do nosso braço ou perna bater contra eles, para evitar o risco de seriamente se machucar. Mas na companhia de meus dois filhos, entre céu e rio, rodeada por água e floresta, me senti deitada em berço esplendido, mais enraizada e forte do que em qualquer dos outros lugares que conheci. Quando Chris alertava, em inglês, meio que imitando as repetitivas gravações designadas `a segurança dos passageiros nos brinquedos dos parques de diversão, "mantenham mãos e pés todo o tempo dentro do veículo" (keep hands and feet inside the vehicle at all times) pensei que ele estava brincando, e ri do excesso de prevenção dos americanos contra todas as possibilidade de perigo.
Repartindo o encosto formado por nossa bagagem com Olivia, ia eu relaxada, deixando parte de minha perna dobrada descansar na borda da canoa, nem mesmo ligando que meu joelho excedesse os limites desta. Não havia, em mim, lugar pra noção de perigo.
Questionando o porque de meu bem-estar, ocorreu-me que eu e meus filhos não temos em comum o que se pode chamar lar original, "home". Nasci no Rio, e lá tive Chris, morando com ele quatro anos diante de um mar de que nunca pensei um dia me separar. Mas, casando com Steve, mudamos para os Estados Unidos, onde, contando Boulder, vivemos em quatro estados. Passamos alguns anos em cada um deles, e Chris encontrou seu lar em todos esses lugares. Durante algum tempo, esqueceu-se da língua materna (meu marido não fala português) e seu primeiro idioma passou a ser o inglês. Ja tinha sete anos quando eu tive Olivia, no Midwest americano. Diferente do irmão, que se familiarizou com todas as cidades em que aterrissamos, ela, americana de nascença, amava o Brasil acima de tudo. Fez o que podia, para que eu e ela nos mudássemos pra la, até que, vindo finalmente parar em Boulder, sossegou. Mas, de vez em quando, ainda diz que quer ir morar na floresta (nem mais no Rio...)
Colorado é o quarto estado em que moramos, e nossa casa atual, a décima. Com tantos lares, e idioma, deixados pra trás, e já tendo Chris ido morar na California há seis anos, é mesmo difícil apontar um lugar em comum com eles como nosso lar original. Mas na floresta das florestas, parece que retornamos às raizes das raizes, assim como, sob Ayahuasca, nos encontramos numa realidade eterna, cujas raízes estão dentro de nós. Sob as árvores, e em nosso coração, verdade física e do espírito, esse princípio imemorial se revelava e me embalava rio acima, como se tudo o mais tivesse deixado de existir.
Quando meu joelho se chocou com um galho de árvore que o barqueiro certamente não viu, Chris levou tal susto que só mesmo para poupa-lo me restringi aos estreitos limites da canoa. Nosso barqueiro não só tinha vista deficiente, como um motor extremamente lento. Várias canoas, indo e vindo, eram bem mais rápidas do que a nossa, mas mesmo assim, entre as paradas para mergulhar e nosso lento avançar, o percurso era pra mim renovador ao mesmo tempo que tão familiar quanto alheio ao resto do mundo, e ainda assim parecendo conter a verdade de todo o planeta. Depois de quatro horas passadas, perguntei novamente ao barqueiro quanto tempo ainda levaria para que chegássemos a Marechal Thaumaturgo, " Três horas..." ele respondeu, com a mesma atitude vaga. Olhei para Chris, "voce acha que ele me entende?", "Sei lá..." Chris respondeu, sem querer revelar que antes de Thaumaturgo, bem antes aliás, ainda tínhamos que chegar ao Breu, "... Mas como, se saimos do Breu?"(aquela altura, pensei que estava sonhando) " É outro Breu, mãe, o Breu brasileiro", "... Tudo aqui se chama Breu?..", Chris riu, "E quanto tempo vai levar do Breu brasileiro, pra Thaumaturgo?" " Sei lá mãe, e o dono do barco também não deve saber..." Deus meu, será que não podíamos ter pego um barqueiro melhor? Realmente, aquele homem que nos conduzia não parecia entender ou saber nada.
Peguei no sono algumas vezes, e fui acordada abruptamente, sempre que a canoa encalhava nas partes mais rasas do rio, e toda a água acumulada no seu chão jorrava lá de trás, passando sobre meus pés como uma enchente, e enquanto Chris entrava no rio para empurrar o veículo, eu lembrava onde me encontrava, sentindo grande alivio ao ver o verde das arvores acima de mim. Mas o dia começou a cair, e nem sinal de qualquer lugar onde se pudesse parar. Já tinha uma estrela no céu, quando o barqueiro informou que estávamos cruzando o limite entre Peru e Brasil. Chris me disse ser inviável viajar `a noite naquelas canoas, e o tal Breu brasileiro começava a aparecer. O barranco do rio estava altíssimo, mas havia uns três rapazes perto da agua, que nos olharam como se fossemos apariçōes. Um deles chegou perto e, ajudando a puxar a canoa fora da água, perguntou de onde vínhamos. Meus dois filhos são tipicamente "gringos", enquanto que eu não faço o tipo característico de brasileira, ou de nenhuma nacionalidade. Pra todos os efeitos, éramos todos estrangeiros, com excessão do barqueiro: o que levaria estrangeiros aquele vilarejo? "Estamos de passagem, para Apiwtxa, onde vamos encontrar o Benki", Chris explicou, "Benki é meu amigo.." disse o rapaz, " Tem alguma pousada aqui?" "Sim, vocês sobem o barranco, e logo ali
à direita, bem do lado da igreja, vocês encontram onde dormir, e podem vir comer na minha casa", explicou amavelmente, o rapaz.
O "Logo ali `a direita" encheu de água a minha boca, fazendo-me imaginar cervejas geladas e até, quem sabe, ar refrigerado à nossa espera. Escalamos o barranco carregando nossa tralha, e, caminhando para a direita, avistamos a pequena igreja, " A pousada é isso...", disse Chris, ao nos defrontarmos com um espaço aberto e ligeiramente elevado, sob um teto em que se podia pendurar nossas redes. Tchau cervejas, mas amanhã encontraremos Benki, pensei, dispondo nossas coisas
`a volta das redes que o barqueiro e Chris penduravam.
Tipicamente Brasil, a comida que o rapaz nos ofereceu era pouca, mas o coração dele era grande, e isso que realmente conta. Agradecemos o mais que pudemos, e enquanto Chris conversava com ele e respondia suas inúmeras perguntas, eu voltei para a "pousada", e qual a minha surpresa! Ja noite fechada, a voz bombástica de um evangelista catequizando os inocentes dentro da igreja, podia se ouvir como se ele estivesse na rede ao lado. Porque Jesus disse isso, gritava sem a menor reverencia, Jesus proibiu aquilo, Jesus é o nosso Senhor, ele pode afastar o mal, mas ele quer que se tenha fé e que se ajude a sua igreja, prosseguia, impunemente autoritário, como se falasse de algum medíocre com quem acabava de tomar uma cachaça. Fantasiei entrar na igreja e lhe dizer que deixasse aquela gente em paz, pois eles na certa estavam mais perto do filho de Deus do que alguém que, falando do Senhor com intimidade inadequada e mentirosa, não expressava sombra de respeito.
Nossa! Ja era mais tarde que nove horas, e ainda tinha gente entrando na igreja, como que eu poderia dormir, e se não dormisse, como aguentar o som daquela voz dando show de pretensão e sensacionalismo? Pensei em Benki, que iriamos encontrar no dia seguinte, e que, sem nunca precisar pronunciar o nome de nosso senhor, me transmitiu mais fé do que qualquer pastor poderia transmitir. Então, me lembrei. Meu iPhone, com as gravações da obra prima de Proust me salvaria. Enfiei-me na rede que me fôra designada, fechei o mosquiteiro aderente a ela, enfiei em cada orelha os fones de ouvido, e adeus pastor, adeus catequização, adeus tudo que destoa da espiritualidade autentica de Proust.
A passagem que me veio da Recherche foi a descrição da duquesa, por quem Marcel estava apaixonado. Vizinho dela, ele podia ver de sua janela, ela se aprontar diante do espelho, "no esquecimento mitológico de sua grandeza nativa, ela olhava se seu véu estava bem colocado, endireitava suas mangas, ajustava seu casaco, como o cisne divino faz todos os movimentos de sua espécie animal, mantendo seus olhos pintados dos dois lados de seu bico sem nem mesmo olhar, e se joga de repente num botão ou num guarda-chuva, como cisne, sem se lembrar ser um deus."
Proust reconhece que sua imaginação em busca da perfeição vê dimensão transcendente no mais carnal de seus desejos, e conclui que na busca do amor, nós ligamos a pessoa amada a divindades, e assim povoamos nosso mundo com elas. Proust na sua capacidade de adoração se expressa de maneira tão linda, que suas palavras, com a validez da beleza, transmitem mais verdade do que a realidade factual, quer dizer, revelam as impressōes digitais de Deus na pessoa que ele amava. Palavras muito mais convincentes, e na sua intensidade poética, muito mais transcendentes do que as do pastor ao lado, transmitindo melhor do que qualquer padre a presença da divindade.
Jesus constantemente mencionou ser filho do homem, na generosidade de repartir conosco a sua própria proximidade de Deus. "A carne é fraca", mas, na sua possibilidade de entrega ao divino ela abriga a força do homem.
Consegui dormir, e ja tendo passado a fronteira sem problema, sabia que no dia seguinte veríamos Benki. Não foi bem assim, pois só conseguimos chegar a Marechal Thaumaturgo `a noite, depois de quase bater- não tivesse Christophe os segurado e com as pernas impelido a canoa na direção contrária- nos troncos de árvore que o barqueiro não viu, e tivemos que pernoitar lá. Arranjamos outro barqueiro na manhã seguinte e conseguimos chegar a Apiwtxa sob o terrível sol das duas horas. Depois de subir o barranco e caminhar grande parte da aldeia, encontramos Benki ao ar livre, em conselho com outros índios. Já não mais esperando nossa visita, quando soube do absurdo de termos vindo do Peru e passado dezesseis horas numa canoa, ele deu uma grande gargalhada de humor e boas vindas, como se tivéssemos conseguido o impossível.
Não se costuma ir `a Apiwtxa pelo Peru, a não ser alguém que prefere seguir ideias do que mapas...Alguém que tem experiencias espirituais mais profundas através do texto de Proust do que do papo de qualquer pajé, ou da ida a qualquer lugar. Assim, depois de um ritual de Ayahuasca sob céu estrelado, consegui finalmente adormecer dentro de minha rede, entre todas que estavam penduradas do lado de fora da casa de Benki, abafando os ruídos estranhos de animais híbridos e semi-domésticos, com a gravação do texto de Proust nos ouvidos e sua constante, crescente, purificante, instigante, ímpar, e apaziguadora revelação do espírito! Sem tomar Ayahuasca, Proust, que dá de si até a última gota em qualquer situação e assunto que descreva, alcança os extremos insuperáveis da alma humana, aqueles que, finais, são vizinhos da morte. Por encará-la sempre, ele atinge o máximo, ele vive na força!