Ayahuasca, a Reconciliação
Disse Oscar Wilde que “Patriotism is the virtue of the vicious”. Gosto de lembrar isso porque considero cada indivíduo um cidadão da humanidade. Nesse ponto de vista individualista, é como se rótulos, e tudo que não seja o ser inato, não tenha importância. Ser francês e falar francês, por exemplo, são rótulos que podem ser trocados, se a pessoa quiser mudar para o Canadá, para virar “canadense” e falar inglês, e por aí afora. Por isso, disse Sartre, que o homem é constante poder de se auto criar.
Mas alem dessa indiferença a limites geográficos e culturais, eu ressentia o Brasil na maioria das lembranças do que vivi la, como a adolescência alcoólatra, a anorexia quase fatal, a neurose doméstica, enfim, tudo que começou com a juventude. Esse ressentimento obviamente me ajudou a vir morar aqui e continuar a viver como árvore transplantada. Mesmo assim, lembrava meu lugar de origem com um espinho no coração, entre saudade e revolta. Até que pouco a pouco, em instantes de plenitude, Ayahuasca resgatou, pra mim, o tempo da relação primordial que se tem com o mundo antes da palavra; da “tradução” de outrem; do conhecimento do dever, e de toda essa mediação que enfraquece, distancia e finalmente quebra a comunhão original que temos com o que nos rodeia, na pureza da sensação e no imediatismo do sentimento, antes do imperdoável surgir da racionalidade.
Ayahuasca retornou o tempo em que eu e o que me rodeava vivíamos num mesmo ser, como a praia de Copacabana na época em que, diante dela, tive minha primeira morada neste mundo, quando o mar, em frente a nosso apartamento, estava também dentro de nós. Numa cozinha que era imensa pra mim, eu tinha meu lugar a uma pequena mesa, junto a meu irmão, na sua cadeirinha de bebê. Tudo era muito alto, numa constante mutação de branco, para azul, para a cor do vento, porque o vento soprou o mar pra nós, inundando tudo com o seu sussurro que se misturava `a musica das ondas e ao o azul omnipresente do oceano. Texturas se interpenetravam, num movimento de cores que era ar marinho e elemento liquido ao mesmo tempo, frescura que vinha pra cozinha e pro nosso coração… Objetos e emoções, além de superfícies fixas e rótulos de palavras, criavam a mesma intensidade alegre que anulava os limites de cada coisa, transformando tudo na manifestação de algo maior.
A cozinha era o mar dentro da cozinha, o mar la fora era nossa cozinha misturando-se nele, a brisa do mar era respiração do corpo e do céu, o azul das ondas e o branco da parede eram diálogos entre o fora e o dentro, o dentro e o fora. Nosso lanche estava em cima da mesa, e a voz grossa do mar nos dizia pra comer através da nossa mãe, que virava o rosto em outra direção pra poder fingir ser ele, voltando então a nos encarar e dizer, na sua própria voz, que o mar queria que ficássemos fortes, devíamos comer, o mar mandou…
Saber que era mamãe falando como o mar não me impedia acreditar que era o mar que falava com a gente. Tudo podia ser tudo, na unidade que as criancinhas sentem em sua ignorância da rigidez dos conceitos e limites verbais. Cada vez que mamãe repetia o pedido do mar, era ele que eu ouvia, e era ela que eu amava por se tornar ele. Esse entrelaçar de cores, seres, brisa e voz, na cozinha do meu primeiro lar, retornava a unicidade daquele momento na experiência de uma essência comum do som, tato, vista, fora e dentro, mãe e mar, coração e vida.
Naquelas manhãs douradas, mamãe nos levava `a praia, nos banhava no mar, Edgar pequenino gritando e esperneando, e nos levava de volta `a nossa toalha naquela areia infinita, para voltar e mergulhar sozinha. Afastava-se, na direção de uma onda maior que tudo, e que distante parecia tão perto, no seu verde que não parava de crescer, espelhando o sol como estrela liquida e viva, atraindo e assustando, esticando e encolhendo com o pique e curva da massa fluida no seio da qual brilhava essa estrela, coração pulsante e aniquilador; divindade pronta `a explodir e abençoar.
Determinada, mamãe se aproximava do luminoso e imperativo coração de sal e luz, ficando mais e mais longe de nos, tão pequeninos na toalha rectangular, cuja precariedade, sob o comando materno de que sobre ela esperássemos , se transformava, como uma bandeira, na afirmação de nosso território, sob o sol quente de Copacabana. O mar, o céu, a areia, a onda e seu coração, os passos de mamãe na sua direção… Tudo era imenso. Não em tamanho, algo relativo, que não podia fazer parte de um universo em que as coisas só são vistas com o coração, mas em significado. Aquela imensidão era o calor gostoso sobre minha pele arrepiada, os pingos de agua salgada escorrendo do meu rosto e desaparecendo na toalha em que meu irmão ainda bebe estava deitado, em submissão e maravilhamento, tão redondo e macio perto de mim…
Nós dois, um amontoado quase amorfo de curvas e formas molhadas no tecido quente que, naquele gigantesco espaço, continuava a ser nossa ancora na autoridade de nossa mãe; na entrega da inocência. A onda podia engolir ou retorna-la pra nós, mas ainda assim nossa confiança tudo abrangia. Água salgada tinha gosto de ameaça e beleza em minha boca. Aquele momento reproduziu-se em outra onda, invisível porém gigante, de alivio e felicidade.
Ayahuasca permitiu que minhas raizes se revelassem dentro de mim, na imensidão de praias atemporais de um mar sem fim, reconciliando-me, paradoxalmente com o solo mais orgânico e particular de onde nasci. Embora sem patriotismo, senti orgulho de vir de um chão nacionalmente comum com a floresta do chá, e com as culturas nativas que o descobriram. E também, do Brazil ainda ter índios, e dessa floresta conter cerca de 50% da biodiversidade mundial, tendo sido mostrado, em pesquisas recentes, que ela retira mais gás carbônico da atmosfera do que emite.
Contrastando com todos os escândalos de corrupção nacional, o país é literalmente fonte da maior pureza no ar e no verde da sua floresta, e metaforicamente, na sabedoria shamanica dos índios. Ayahuasca é reconciliação na esfera da vida pessoal, universal e cósmica, trazendo a consciência da conexão de cada um com a criação. A rede que tudo liga e irmana, muitas vezes aparece como sentido prateado e transparente entre todos os coraçōes.
Enquanto reconciliação, Ayahuasca é Perdão.
Pensei que um dia esse Perdão se ramificaria através do mundo, remendando a cisão feia e pretensiosa entre os homens e o planeta; a divisão que dá, aos primeiros, a posição de exploradores, transformando o segundo em campo de depredação. Mas, enquanto nossos índios corajosamente levam a mensagem do sacramento da floresta a outros países, na paciência infinitamente humilde de mostrar a luz aos civilizados, quer dizer, ensinar aqueles que se consideram seus superiores, ha quem os mate por interesse material, em seu próprio território.
Com muita tristeza e revolta, venho vendo, mais e mais frequentes, noticias da “vista grossa” ao genocídio de índios e desmatamento da floresta, com a sanção do governo brasileiro. O aumento da concentração de gás carbônico, contribuindo para o efeito estufa, resulta também da substituição de áreas florestais por pastos de agropecuária e construção de barragens, dando ao Brasil quarto lugar entre os maiores emissores de gases que causam esse problema.
Parece que não contentes em ser notícia internacional através de roubos e escândalos políticos, brasileiros ainda correm para dar, em seu próprio país, o golpe de misericórdia: a destruição da própria inocência. Pois o Brasil tem, nas culturas indígenas, a inocência em estado “puro”: a vida, independente de direitos burocráticos de posse, a vida “sem lenço e sem documento”, pois que nascida da espontânea interação dos nativos com a terra e a água, ao invés da conquista e opressão sempre presentes na origem das naçōes formadas pela civilização. Mas despreza-se, entretanto, os nativos, a sua sabedoria shamanica imemorial, e o potencial poder de cura da própria floresta, tripudiando-se suas mais genuínas raizes, para se igualar, no pretexto de busca pelo progresso, ao lado negro da civilização; `a ganância pelo dinheiro.
Acorda, Brasil! Será que mesmo diante das calamidades ecológicas resultantes do reverenciado “progresso”, não da pra tentar rumos diferentes? Quando se poderá ver que, mesmo sem dinheiro, é mais rico o território que contem metade da biodiversidade do mundo, e a possibilidade mágica, para não dizer, transcendente, de salvação?
Pois, Ayahuasca transcende. Já ouvi céticos dizer, depois de experimentar o chá, “Yo no creo en las brujas, pero que las hay, las hay”
O Brasil será campeão se, ao invés de participar da corrida apocalíptica construindo represas, ou de se afirmar com futibol e carnaval, promover e proteger a unicidade milagrosa do seu próprio solo.