A Arte de se Vestir
Obviamente, chamar de “arte” uma de nossas atividades básicas diz respeito ao fato de que se vestir bem envolve bom gosto.
Mas neste texto, quero considerar, inerente ao bom gosto, a dimensão ritualística do que, aparentemente, não passa de uma feliz combinação de peças de roupa.
O que melhor expressa o que digo é a descrição de Marcel Proust sobre a mulher que ele, adolescente, admirava diariamente, passeando no Bois de Boulogne. A ex -cocote Odette de Crécy, então transformada pelo casamento em Mme Swann, é a musa que o jovem Marcel orgulhosamente acompanhava nesses passeios, e de quem diz, apreciando a sua indumentária :
“ Et je comprenais que ces canons selon lesquels elle s’habillait, c’était pour elle-même qu’elle y obéissait, comme `a une sagesse supérieure dont elle eût été la grande prêtesse:”“ Eu percebia que os princípios de acordo com os quais ela se vestia, ela os obedecia para si própria, como que a uma sabedoria superior da qual ela fosse a grande sacerdotiza:”
Ilustrando o que diz, Proust então descreve os lindos detalhes da vestimenta de Odette, como as minúcias no avesso de sua jaqueta, que teriam pouca chance de serem vistas por outros que não ela, ou seja, minúcias que existiam em si próprias, no pacto com a beleza e a qualidade, independentemente de qualquer finalidade exibicionista ou utilitária. Destinavam-se `aquelas que, do mesmo modo que Odette-ao ter escolhido a peça em que figuravam, sabia que praticamente ninguém iria poder aprecia-las- poderiam honrar, como sacerdotisas, uma realidade transcendente.
Dessa realidade vem o requinte das embalagens de cosméticos ou perfumes, as quais, uma vez extraído delas o produto, são destinadas `a lata de lixo. Steve Jobs explica ter exigido que a experiencia estética dos produtos Apple começasse a partir do contacto com a sua embalagem. Na mesma veia praticamente ritualística, muitas mulheres brincam com maquillage diante do espelho, fazem poses sem ter auditório, ou melhoram “selfies” que nunca serão vistos por ninguém. Em termos de utilidade, nada disso seria preciso. Mas Deus existe: A estética, que fala `a contemplação, está muito acima da utilidade, que responde `a finitude do tempo. O belo conta estórias, enquanto o útil instala pontos finais. O primeiro encanta, o segundo escraviza. Se um está alem, o outro vive aquém; o belo sendo excelência, e o útil cobrança, pois enquanto a utilidade aprisiona, a beleza liberta.